"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

RASCUNHANDO CONTRA AS TRAGÉDIAS

Resultado de imagem para áreas de risco


                                                                                                                                                                                          (Imagem:ggn)
José Antonio Lemos dos Santos
     Há alguns anos venho aventando uma forma de punição efetiva aos prefeitos inadimplentes com a legislação urbanística, em especial em pontos que ameaçam a vida do cidadão. Tal preocupação decorre das tragédias que se repetem nas cidades brasileiras a cada período chuvoso, sempre resultando em mortes e grandes prejuízos financeiros tanto ao erário público quanto a empresas e famílias, em especial às mais carentes que muitas vezes perdem tudo o que foi obtido com muito sacrifício. O objetivo seria promover através da punição a aplicação das medidas ordenadoras preventivas já existentes nas leis urbanísticas municipais, sejam avulsas ou decorrentes dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano (PDDUs) exigidos pela Constituição Federal. Num segundo momento, no futuro, poderiam até ser pensadas formas de premiações como estímulos às boas e bem sucedidas práticas.
     A referência inicial da ideia é a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que prevê ao mau administrador punições que podem ir até a perda de cargo eletivo e a suspensão dos direitos políticos. Na verdade, tudo já era previsto na legislação anterior, mas foi preciso fazer uma outra específica para que as regras começassem a valer (nem tanto). A desobediência ou negligência para com leis urbanísticas também se caracterizam como crimes e já são puníveis pela legislação vigente, porém, são acintosamente desrespeitadas sem quaisquer tipos de punição, com as consequências nefastas para as cidades e seus habitantes. Talvez uma legislação específica, como no caso da LRF, traga o indispensável e urgente respeito às leis urbanísticas.
     Neste rascunho seriam cobrados alguns indicadores específicos da legislação urbanística básicos à vida do cidadão e ao ordenamento do espaço urbano como: ocupações em Áreas de Risco, ocupações em Áreas de Proteção Ambiental, extensão de córregos canalizados e dimensão da Zona Urbana.  Ao final de seu mandato o prefeito não poderia deixar a maior qualquer um destes indicadores, do contrário seria julgado por improbidade administrativa ou crime de responsabilidade, ou o que for definido numa formatação jurídica final para esta proposta (se um dia acontecesse), pelo não cumprimento da legislação urbanística.
     A existência de uma legislação nestes moldes puxaria de imediato alguns benefícios concretos. Um deles, a necessidade de estruturação técnica dos municípios para acompanhamento de seu desenvolvimento urbano para aqueles que ainda não tem, ou a disponibilização de programas mantidos pelos estados e pela União de apoio aos municípios menores, incapazes de sustentar este serviço por conta própria. Para o caso dos 4 indicadores propostos nem seria assim tão dispendioso tendo em vista os imensuráveis benefícios humanitários que trariam, ou pela disponibilidade de ferramentas de sensoriamento remoto tão comuns hoje, como as populares do Google, ou as usadas pelo IBAMA no controle de focos de incêndios ou desmatamentos, que identificam cada foco de calor na Amazônia ou cada árvore sacrificada. Acho que poderiam muito bem atender também à tarefa de salvar vidas humanas nas cidades.
     Implicaria também na reconceituação dos PDDUs como processos contínuos de planejamento e não mais como produtos ou “pacotes” adquiridos apenas para cumprir formalmente a exigência constitucional.     Talvez o mais importante, despertaria a necessidade de se rever o conceito de Política Habitacional, não mais como uma ferramenta de promoção da indústria da construção civil, só para enriquecer empresários e políticos construindo casinhas mesmo em áreas sem características de urbanidade, mas como ferramenta efetiva de promoção do habitat urbano e da qualidade de vida digna para suas populações. 


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

CENTRO CULTURAL SUL-AMERICANO


Turistas no Centro Geodésico (Foto:José Lemos)
José Antonio Lemos dos Santos
     O artigo anterior sobre o Centro Geodésico da América do Sul lembrou-me a antiga ideia de um centro de cultura sul-americana a ser criado naquele local como proposta de ocupação à altura do simbolismo do espaço e de aproveitamento de um dos maiores potenciais para a geração de emprego e renda em Cuiabá. Recordou artigos como o publicado em 1986 em “O Estado de Mato Grosso”, capeando caderno especial sobre o assunto no qual expus a preocupação: “Vamos imaginar que a tendência se confirme e a nossa Assembleia Legislativa seja deslocada para outro ponto da cidade. Teríamos a desocupação do prédio onde ela se instala atualmente. E daí? Como vai ser utilizado? Poderia ser a Câmara de Vereadores de Cuiabá, a qual, entretanto, já está com sua sede em construção. Naturalmente que o prédio vai ser ocupado de alguma forma. Por que não começarmos a pensar numa forma de utilização que esteja à altura da carga simbólica que envolve aquele espaço?”.
     Passadas mais de 3 décadas, a Assembleia Legislativa realmente mudou para o CPA numa sede moderna e a Câmara de Vereadores está ocupando a antiga sede da Assembleia, pois foi paralisada a obra daquela que era prevista como sua nova sede em 86. Porém, por se tratar de uma antiga região da cidade, hoje a Câmara se debate com os mesmos problemas de acessibilidade e estacionamentos vividos pela Assembleia Legislativa em 1986. A necessidade de uma nova sede está de volta. Em 2005, na entrega das chaves do edifício à Câmara o então governador Blairo Maggi vaticinou que, por ele e seu secretário João Vicente Ferreira, o destino final do prédio seria o Centro Cultural da América do Sul, algo semelhante ao do meu artigo de 1986, e que esse projeto só era postergado ante uma premente necessidade da Câmara de Cuiabá mas que seria retomado um dia quando o legislativo cuiabano mudasse para uma sede definitiva, com o espaço retornando ao estado.
     E algo me diz que pode estar na cabeça do atual presidente da Câmara a intenção de construir a sede definitiva para o Paço Municipal Paschoal Moreira Cabral. Não seria nada improvável que tal acontecesse com um homem de visão futurista e empreendedora como Misael Galvão, apoiador de primeira hora e propulsor do magnífico Shopping Popular quando ainda projeto do antigo IPDU, e revitalizador do então abandonado Centro Esportivo do Dom Aquino. A história conspira a favor daquele precioso marco geodésico e quer dar a ele uma ocupação digna de todo o seu significado. Um lugar onde fossem desenvolvidos estudos, cursos, exposições, congressos, festivais e outras atividades sobre as manifestações populares autênticas do continente como, por exemplo, as diversas línguas (o quíchua, o aimará, o guarani e outras), a gastronomia, vestuário, danças, oficinas de fabricação e ensino de instrumentos musicais (como a harpa paraguaia, o charango, as flautas andinas, a nossa viola de cocho, entre outros). No mínimo poderia ser promovida uma festa anual festejando em um abraço continental alegre e pacífico a cultura popular do continente com barracas de cada país trazendo música, dança, comidas típicas, artesanatos e outros.
     Uma certeza eu tenho: estivesse o centro geodésico em qualquer outra cidade (Campo Grande ou Curitiba, por exemplo) há muito estaria rendendo empregos e renda em favor de sua gente como uma atração turística importante. Junto com as belezas do Pantanal e da Chapada, as termas de São Vicente, as “plantations high tech”, as floradas de girassol e algodão, a criação do centro cultural sul-americano no exato centro geodésico da América do Sul transformará Cuiabá em um pacote múltiplo de atrações bem vantajoso ao investimento ao turista nacional e internacional. Um dia acontecerá, aquele lugar é mágico.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O CENTRO GEODÉSICO

Turistas no Centro Geodésico da América do Sul durante a Copa (Foto:José Lemos)
José Antonio Lemos dos Santos
     A história de Centro Geodésico da América do Sul não veio do nada, tem uma origem e tem gente muito mais capaz que eu para contá-la. Dadas as desinformações danosas a Cuiabá e ao estado, arvoro-me a contar o que aprendi nestes quase 40 anos em que trato o assunto em artigos e debates. De início recorro ao geógrafo Aníbal Alencastro, maior estudioso da matéria, que cita Joseph Barbosa de Sá, do século XVIII:“Achace esta Villa assentada na parte mais interior da América Austral, em altura de quatorze graos não completos ao Sul da linha do Equador, quase em igoal paralelo com a Bahia de Todos os Santos, pela parte Occidental com a cidade de Lima, capital da Província do Peru, em distancia igoal de huma e de outra, costa setecentos e sincoenta légoas que sam as mil e quinhentas que tem latitude nesta altura deste continente, assentada a beira do rio Cuyabá ...”.
     Muito embora se refira a uma centralidade geográfica definida através de medidas (“graos”), sem dúvida é com Barbosa de Sá que começa essa história. Cabe aqui uma distinção entre centro geodésico e centro geográfico. Data vênia dos especialistas, grosso modo, centro geográfico de um território seria o ponto médio entre suas latitudes e longitudes extremas. Já centros geodésicos são marcos físicos onde estão registradas as coordenadas e altura daquele ponto, integrados numa rede planetária e destinados a embasar de maneira uniforme serviços cartográficos, topográficos, cadastrais e outros. Existem muitos pelo mundo e em Cuiabá um deles é o demarcado pela Comissão Rondon em 1909 na Praça Moreira Cabral, antigo Campo D’Ourique.
     Aconteceu que Rondon ao fazer o primeiro mapa de Mato Grosso ao milionésimo ele se utilizou daquele ponto geodésico como referência inicial ao qual se amarraram todos os demais pontos demarcados à medida do avanço dos trabalhos de mapeamento. Mais tarde, em 1927, o mesmo Rondon foi incumbido de retificar as fronteiras terrestres brasileiras com todos os países da América do Sul e de novo este marco serviu como referência “zero” para este hercúleo trabalho que, segundo Alencastro, percorreu “um total de 17.366 Km, com implantação de marcos que até hoje lá estão firmes e sólidos não ocorrendo nenhuma dúvida quanto aqueles limites de fronteira até hoje”. Depois, ainda segundo Alencastro, em 1934 “Rondon foi o árbitro do “Conflito de Letícia” harmonizando as fronteiras entre a Colômbia e o Peru, e o marco em Cuiabá continuou servindo de referência inicial.
     Por último recorro ao saudoso professor Lenine de Campos Póvoas que em sua residência explicou pessoalmente a mim e ao então deputado José Lacerda que anos depois foi elaborado o mapa da América do Sul, também tendo como referência os trabalhos de Rondon. Daí e mais a centralidade identificada por Barbosa Sá no século XVIII, surgiu a expressão “Centro Geodésico da América do Sul”, que em 1972 virou lei e por isso deve ser escrito respeitosamente com iniciais maiúsculas.
     No último dia 23 de janeiro de 2020 o governo do estado criou o “Monumento Natural Centro Geodésico da América Latina”. Louvável a criação da Unidade de Proteção Integral para a beleza cênica e a biodiversidade local, bem como o fomento ao turismo, mas América Latina é uma coisa e América do Sul é outra. O risco é expor ao descrédito dois recursos turísticos extraordinários de Mato Grosso: a beleza do mirante na Chapada e todo o significado do “Centro Geodésico da América do Sul” de Rondon no Campo D’Ourique. Tenho elogiado o governador em muitas de suas ações como as referentes ao gás, aos cuidados com a Arena Pantanal e à retomada das obras da Copa. Mas este “centro geodésico da América Latina” juro que ainda não entendi.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

O SILÊNCIO DOS URBANISTAS

(Foto: ReproduçãoTvGlobo)
José Antonio Lemos dos Santos
     Por que os constituintes incluíram na Constituição Federal de 88 um capítulo dedicado à Política Urbana e no artigo 182 determinou que as cidades brasileiras com mais de 20 mil habitantes devessem ter um Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU)? Por certo não foi para enfeitar as estantes dos gabinetes prefeitos. A própria Constituição responde quando estabelece o plano diretor como “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, política a ser “executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei”, com objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.”  Mas faltou expressar que os PDDUs fossem respeitados e implantados.
     Passados mais de 3 décadas da promulgação da Constituição de 1988, a maioria das cidades brasileiras já tem seus PDDUs, em especial as maiores, sendo uma de suas ferramentas básicas a regulamentação do uso e ocupação do solo, cuja elaboração se baseia em um mapeamento, com os geólogos, das condições geotécnicas próprias ou impróprias para a ocupação do sítio urbano, tanto nas áreas consolidadas como nas áreas possíveis de expansão. Dentre estas as áreas, as equipes técnicas debruçam-se com especial atenção na identificação das impróprias à ocupação humana pelos riscos que oferecem por inundações, alagamentos, deslizamentos e outros aos eventuais moradores.
     Causa indignação a todos, em especial aos próprios urbanistas, a repetição anual das tragédias vividas pelas cidades brasileiras, como as recentes no Espírito Santo e Minas Gerais, em especial sobre Belo Horizonte, uma das capitais com melhor estruturação técnica em termos de planejamento urbano no Brasil. Certamente tem seu PDDU elaborado nos mais elevados níveis técnicos, contando com a demarcação clara de suas Áreas de Risco onde o parcelamento do solo não pode ser admitido, em especial para moradia. Assim, não dá para aceitar que estas tragédias virem rotina. São emblemáticas as imagens da tranquilidade dos frequentadores de um restaurante em Belo Horizonte assistindo, com água pelo meio das canelas, carros sendo levados pela enxurrada do outro da janela. Balanço da tragédia até o dia 31 de janeiro último: 66 mortos e 68.959 flagelados no Espírito Santo e Minas Gerais.
     Indignação maior fica com o urbanista que trabalha por este Brasil afora dando o melhor de si na elaboração, monitoramento, correção e atualização contínuas dos PDDUs.  Estas tragédias deixam no cidadão comum a impressão de que no Brasil não existe o Urbanismo, que não existe planejamento urbano e que os urbanistas, aos quais a sociedade delega a responsabilidade da competência exclusiva sobre o urbanismo, são um bando de incompetentes, sugadores das tetas públicas, refestelados em seus cargos a assistir a desgraça das cidades. Quando das tragédias, logo aparecem autoridades em lágrimas de crocodilo empurrando a culpa para São Pedro explicando que desconheciam os riscos, mesmo que tão bem mapeados nas leis municipais de uso e ocupação do solo urbano que criminosamente não são cumpridas.
     E para gáudio dos políticos a desgraça logo vira oportunidade de verbas adicionais para mapeamentos que já existem ou obras nem sempre de acordo com os planos e que nem estarão concluídas antes das próximas tragédias. Pior para os urbanistas é que nestes momentos seus órgãos representativos não aparecem e nem são convidados para as comissões de investigação e avaliação dos flagelos, muito menos para defender publicamente os PDDUs, produto maior dos urbanistas, e cobrar punição exemplar para aqueles que não cumprem suas determinações e tinham a obrigação pública de fazê-lo.