"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



terça-feira, 27 de abril de 2010

OS 590 ANOS DE BRASÍLIA

José Antonio lemos dos Santos

     Em 1420 foi iniciada a construção da cúpula da igreja Santa Maria del Fiore, em Florença, um desafio até então não superado pelo engenho humano. Aí apareceu Filippo Brunelleschi, um joalheiro que precisou de muito esforço para mostrar ser capaz de construir a grandiosa cúpula, tanto que para alguns o desafio do “ovo em pé”, atribuído a Colombo, teria sido posto por Brunelleschi em sua argumentação. Ao final não só construiu a cúpula, mas com ela marcou o início do Renascimento na Arquitetura e fixou as bases do que é hoje o projeto arquitetônico. A sua nova e revolucionária maneira de projetar estabeleceu que qualquer obra deve ser definida em todos os seus detalhes antes de construída, algo tão óbvio hoje que parece ter sido sempre assim.
     Em seguida vem Alberti, um quase contemporâneo que levou o mesmo raciocínio para a cidade, considerando-a uma “grande casa”, logo um edifício também sujeito à maneira de projetar de Brunelleschi, ou seja, a cidade também deveria ser concebida totalmente antes de ser construída. Surge então o urbanismo clássico com suas formas geométricas engenhosas, as cidades-estrêla, as perspectivas monumentais, o monumento alvo, etc. Brasília é assim, séculos depois, genialmente concebida in totum, tal como na fórmula primordial renascentista, limitada e definida, sugerindo a forma de um avião.
     As possibilidades e a vontade de fazer eram muitas. Porém, os próprios renascentistas não tiveram chances de aplicar a pleno suas teorias urbanísticas. A Europa vinha de um período de longas guerras e epidemias, sem demanda para novas cidades. Quando havia, resumia-se a pequenos arranjos em função das guerras religiosas, defesas militares e portos comerciais. Fora isso, só intervenções em cidades já existentes, não chegando a ver suas idéias aplicadas em uma nova cidade de porte significativo. Teriam que esperar Brasília, a coragem política de JK, a genialidade de Lúcio Costa e a força do trabalho do povo brasileiro. Mas de lá até a construção muita coisa aconteceu na história do mundo e no desenvolvimento do urbanismo.
     Arriscando um resumo, nesse ínterim a grande inflexão histórica foi a Revolução Industrial.  transformações sociais e as descobertas científicas se sucedem, a urbanização é acelerada e os problemas da recém nascida cidade industrial forçam, no meio do século XIX, o surgimento de novas propostas no urbanismo, como as dos socialistas utópicos e as leis sanitárias de Londres e Paris. Surgem ainda a Cidade Industrial de Garnier, a Cidade Linear de Soria, a Cidade Jardim de Howard, a “unidade de edificação” de Berlage e a “unité d´habitation” de Le Corbusier, como um cadinho efervescente preparando uma solução contemporânea para a nova cidade que surgia. Enfim, abraçando todo esse substrato de proposições históricas, é elaborada em 1933 a Carta de Atenas, documento mestre do Urbanismo Modernista.
     Brasília é a materialização da Carta de Atenas e a realização maior do urbanismo renascentista em seus fundamentos, indispensável ao aprendizado crítico concreto de suas muitas virtudes, e sua natural superação pela própria dinâmica da História na prática do urbanismo posterior. Brasília é resultado do pensamento urbanístico acumulado, em especial desde o Renascimento até sua concepção. Ainda que não fosse reconhecida pela UNESCO, mesmo assim seria um dos mais autênticos e expressivos patrimônios da humanidade. Se européia, seria melhor considerada pela cultura oficial brasileira. Brunelleschi e Lúcio Costa formam o alfa e o ômega de um processo de quase 600 anos e precisam ser devidamente reavaliados nos momentos históricos que ajudaram a construir e nos quais foram os principais protagonistas.
(Publicado pelo Diário de Cuiabá em 27/04/2010)

terça-feira, 20 de abril de 2010

FERRONORTE E OS CONTRÁRIOS

José Antonio Lemos dos Santos

     Relembro que a concessão outorgada à Ferronorte - que em maio fará 21 anos, hoje em poder da América Latina Logística (ALL) – é “para o estabelecimento de um sistema de transporte ferroviário de carga abrangendo a construção, operação, exploração e conservação de estrada de ferro entre Cuiabá (MT) e: a) Uberaba/Uberlândia (MG), b) Santa Fé do Sul (SP), na margem direita do rio Paraná, c) Porto Velho (RO) e d) Santarém (PA)”. Mais que a ligação entre dois pontos, trata-se de um macro-projeto para a Amazônia meridional brasileira, centrado em Cuiabá. Sua lei e o contrato de concessão, deixados pelo senador Vuolo são as garantias desse grande projeto. Não deveriam ser mexidos.
     A lembrança vem a propósito da notícia trazida na semana passada pelo ministro dos Transportes de que teria determinado à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) a suspensão da concessão à ALL do trecho entre Rondonópolis e Cuiabá, decisão tomada “depois que a ALL manifestou desinteresse sobre o trecho à ANTT”. Por coincidência ou não, justo o mais importante da concessão. Seria algo inusitado, como se no transporte coletivo de uma cidade a concessionária escolhesse dentre as linhas objeto da licitação aquelas de seu interesse para prestação dos serviços. Pelo que eu aprendi, neste caso a empresa perderia a concessão por inteiro, e não só os trechos que não lhe interessam. As empresas interessadas em uma concessão fazem seus estudos de viabilidade antes da licitação; não sendo viável, nem entram na disputa. Mas parece que neste caso os outros trechos continuarão concedidos à empresa, pois a própria ALL diz que seu contrato “lhe garante exclusividade para construir outros trechos ferroviários de Cuiabá até Santarém...”! Trechos a escolher também?
     Diz ainda o ministro que essa iniciativa visa assegurar que a ferrovia chegue a Cuiabá, já que, afastada a ALL, o “Governo do Estado ficaria com a responsabilidade de fazer o Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), ”o qual segundo o governador Silval Barbosa será feito nos próximos 90 dias pelo governo e seus parceiros no agronegócio”. E o interesse agora parece ser tanto que, mesmo em fim de governo, segundo o Diário de Cuiabá a “expectativa do diretor do Dnit, Luiz Antonio Pagot, é de que até março de 2011 o governo federal possa fazer a licitação para a nova concessão do trecho entre Cuiabá e Rondonópolis, com direito de passagem até o porto de Santos, em São Paulo.” Bom demais! Nada como véspera de eleições! Continuando a matéria, segundo o diretor, “grupos econômicos da China, Índia e Estados Unidos, além da empresa brasileira Vale, estão interessados na obra”, ainda que ao leigo, mas não idiota, seja difícil imaginar que alguém possa se interessar por um pedaço de 200 Km em um sistema de 6000 km pertencente a outra empresa.
     É bom lembrar também que já existe um projeto aprovado pelo Ministério do Transporte em 1977, cujo EIA/Rrima foi apresentado em audiência pública e que não recebeu parecer favorável da Funai por passar próximo (fora – rio abaixo) à reserva Teresa Cristina. Cobrando a realização de nova audiência pública, o então presidente da Ferronorte disse em 2001 ”tratar-se de um problema que poderia ser contornado com um pequeno desvio do traçado para não impedir o “direito de perambular” dos índios. São detalhes que podem ser corrigidos com pequenas alterações, que terão ônus para a Ferronorte. Mas isso não importa. O que interessa é que o projeto é viável e só depende de uma decisão política para ter continuidade”. Se era viável, porque teria deixado de ser? Hoje não falta projeto, nem viabilidade; falta vencer a vontade, dissimulada ou explícita, dos que são contra.
(Publicado pelo Diário de Cuiabá em 20/04/2010)

terça-feira, 13 de abril de 2010

MARTÍRIO NO LIXÃO

José Antonio Lemos dos Santos

     Como infelizmente tenho feito nas últimas viradas de ano, no começo deste escrevi um artigo sobre mais uma dolorosa edição das tragédias urbanas brasileiras das estações chuvosas, achando que a cota anual desse tipo de desgraça havia terminado, e que só restava nos preparar resignados para as novas tragédias da próxima virada de ano. Qual o que! O Brasil sempre nos surpreende, para o bem ou para o mal. Nem bem iniciado o Outono, nova tragédia se abate sobre nós, agora no Rio de Janeiro. Mais uma vez fruto da irresponsabilidade pública, desta vez chegando ao paroxismo da crueldade em Niterói.
     No artigo do início do ano pensava que o título “Crimes sob as chuvas” fosse forte o suficiente para expressar com correção a origem daquelas tragédias, sempre eufemisticamente atribuídas a São Pedro e a excessos da natureza, mas que na verdade são crimes públicos por negligência na aplicação da legislação urbanística e ambiental, e/ou na observância de recomendações técnicas competentes. No mínimo! Emocionado como a maioria dos brasileiros, iniciei o artigo de hoje pensando que a palavra crime não seria mais suficiente, seria pouco, para expressar o que ocorreu sob as chuvas de Niterói. O que pensar de um prefeito que acompanha e deixa, desde sua primeira gestão em 1989, o povo ocupar a área de um lixão da própria prefeitura, desativado apenas três anos antes? Como não lembrar dos cruéis comboios nazistas de judeus? O que pensar de um cidadão que exerce pela terceira vez a prefeitura de uma cidade - terceira vez! - e que após a tragédia vem a público dizer que “não tinha conhecimento desse risco todo”? E Niterói é uma cidade desenvolvida, de muitos recursos técnicos.
     O drama do Morro do Bumba supera todas as outras dessas tragédias urbanas pois se deu em uma área cujos altos riscos de sua declividade natural foram consideravelmente ampliados pela própria prefeitura com a instalação indevida e tecnicamente incorreta de um lixão no local e depois pela omissão criminosa quando de sua ocupação. Não há como a prefeitura desconhecer; nem o prefeito, administrador da cidade por tanto tempo. Não se pode edificar em antigos lixões horizontais, e muito menos em um com aquele absurdo declive, não só pela geotécnica, mas por problemas como gases tóxicos e inflamáveis, chorume, doenças, etc.. Um crime consciente, gestado por décadas, a céu aberto.
     Quando o Brasil terá administradores públicos realmente governantes, só com a preocupação de governar o bem comum? Quando o Brasil se livrará dos maus políticos que fazem do poder público um meio de vida, mais preocupados com a próxima eleição e com a ampliação de seu poder e de sua estrutura político-eleitoral? Pouco somam se o povo está acima ou abaixo do lixo. De que interessam as tragédias anunciadas se elas podem ocorrer depois das eleições e até lá render alguns votos? E se, por azar, ocorrer durante o mandato, decreta-se luto oficial e nada mudará enquanto os processos não transitarem em julgado. Sob a irônica alegação de que “as pessoas têm a necessidade de encontrar culpados” o prefeito de Niterói fez mais um “sacrifício” pelo seu povo e assumiu a culpa, como se pudesse escapar dela.
     Esta tragédia absurda aconteceu em Niterói, uma das mais importantes cidades brasileiras, na região mais desenvolvida do país. Mostra a urgência do Brasil mudar o jeito de conduzir suas cidades. E parece que a hora chegou pois após esta tragédia criminosa, alguns discursos poderosos ficaram diferentes dos repetidos a cada ano, e me acenderam um lusco-fusco de esperança. Mas isso só em outro artigo.
(Publicada em 13/04/2010)

terça-feira, 6 de abril de 2010

CUIABÁ 300-9

José Antonio Lemos dos Santos

     Em um local com grandes pedras claras onde se pescava com flecha-arpão, por isso chamado Ikuiapá, onde um corguinho encontrava um belo rio, o ouro fez surgir - corgo acima - uma cidade que floresceu bonita e se chamou Cuiabá. O pequeno córrego tinha tanto ouro que era chamado Ikuiebo, córrego das estrelas, tantas as pepitas cintilando à luz do sol e da lua aos olhos bororos nativos. Cuiabá, a celula-mater das cidades e estados que enriquecem o oeste brasileiro, completa 291 anos e caminha acelerada para o seu tricentenário.
     Certamente a cidade receberá muitas homenagens no próximo dia 8 de abril, em especial sendo um ano eleitoral. Para mim, porém, presente algum superará ao recebido na semana passada: falo da desocupação da área da antiga foz do Prainha, sobre a qual já viajei tantos projetos, inclusive em artigos. A cidade ao menos por um tempo pode rever livre aquele espaço que originalmente era ocupado pelo corguinho - que já foi piscoso, depois transformado em denso e fétido esgoto, coberto com terra, como fazem os gatos – e ultimamente ocupado por edificações precárias. A cidade se depara com um espaço aberto, a paisagem urbana desobstruída, o ar, o sol e a ventilação plenos, tão importantes nas elevadas temperaturas cuiabanas. A cidade redescobre surpresa que o espaço urbano é composto de edificações e de vazios, assim como uma sinfonia se compõe de sons e silêncios harmoniosamente combinados, e se pergunta em contida alegria: por que não antes?
     E o lugar ficou bonito, talvez pelo contraste com o que era. Até o Atacadão ficou bonito, visto por quem vem da Beira-Rio. Pena ser por pouco tempo, já que essa área foi vendida pela prefeitura em data e valores não noticiados, sendo desconhecido inclusive se o valor foi suficiente para cobrir as despesas públicas de canalização e aterro da área. A esperança é que o Ministério Público, que já interviu na venda da travessa Tuffik Affi, volte seus olhos para essa área contígua, possibilitando que a cidade recupere aquele espaço que um dia foi seu, permitindo-lhe um acesso urbano digno e a correta interseção de duas de suas principais avenidas que passam pelo local. Há também um novo prefeito, uma boa novidade no cenário político, que por certo avaliará o ônus de assumir e implantar um erro urbanístico que não foi seu.
     Em seus quase três séculos, Cuiabá firmou-se como o pólo de apoio a tudo o que aconteceu neste “ocidente do imenso Brasil”. No exato centro geodésico continental, virou o encontro de todos os caminhos regionais. Assim subsistiu e prosperou, e como autêntico coração mato-grossense bombeou o desenvolvimento a todos os rincões de Mato Grosso, hoje o exemplo de maior sucesso entre os estados da federação. Cuiabá não é mais o centro de um vazio. Ao contrário, polariza uma das regiões mais dinâmicas do planeta, que ajudou a construir e que hoje não apenas lhe cobra o apoio, mas também a impulsiona para cima, em um sadio e maduro processo de simbiose regional ascendente.
     A nove anos de seu tricentenário, Cuiabá vive um salto qualitativo iniciado com o novo século, fruto da nova dinâmica regional. Ainda conquistou a propulsão da Copa do Pantanal. Fazer este salto acontecer é a responsabilidade da atual geração de cuiabanos, sua cidadania, autoridades e lideranças, construindo positivamente o futuro, mas também reagindo contra oportunistas previsíveis e manobras geopolíticas dissimuladas adversas. A disposição para uma ação conjunta buscando com que os benefícios do novo tempo se materializem na cidade e na qualidade de vida em todo Mato Grosso, esta seria o maior presente a ser dado a Cuiabá no seu 291º aniversário e em cada um dos anos que faltam na construção da grande festa do tricentenário.
(Publicado pelo Diário de Cuiabá em 06/04/2010)