"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A ASCENSÃO DOURADA

 

Neto com os Douradinhos mascotes (Foto José Lemos)

José Antonio Lemos dos Santos

     Sou do tempo em que o futebol era tido como coisa de “malandro”, de quem não queria estudar, “matador” de aulas e coisas assim. Maldade. Era apenas paixão pela bola, fosse ela uma laranja, tampinha de garrafa, bolinha de meia ou de papel. Como era muito ruim de bola eu só jogava com os amigos nas ruas próximas de casa, descalços em piso de chão batido, às vezes em ladeira e com alguns afloramentos de cristal que uma hora ou outra tiravam a tampa de um dedão do pé, logo socorrido com um jato certeiro de urina no local. E seguia o jogo até a bola sumir no breu da noite. A não ser que as mães chamassem antes, de cinto na mão para tomar banho, jantar e aguardar a tv entrar no ar. 

     O esporte, todos, é uma das formas mais elevadas de manifestação da vida saudável e no Brasil, em especial o futebol. Longe da equivocada ideia da malandragem, hoje o futebol envolve um dos mais ricos mercados de trabalho no mundo e sem dúvidas deve ser incentivado junto aos demais esportes como alternativa de vida à juventude brasileira, tão assediada pelos falsos brilhantes dos descaminhos da vida. E o esporte é o melhor e o mais natural antídoto. A ascensão e permanência do Cuiabá Esporte Clube na elite do futebol brasileiro é um alento nesse sentido. Apesar da pandemia, o entusiasmo com que o público abraçou com civilidade e alegria o clube em 2020 e 2021 demonstra a paixão que pode despertar um trabalho bem organizado em torno do esporte, não só em Cuiabá, mas em todo Mato Grosso. As crianças, adolescentes e mesmo adultos, já exibem orgulhosos a camisa da nova paixão local, adotando ídolos daqui ou que vieram de fora, mas todos de carne e osso como qualquer um dando ao jovem a ideia de que podem ser iguais a eles desde que dedicados ao esporte e zelosos com o próprio corpo. Não mais aqueles feixes de elétrons televisivos intangíveis, distantes. Agora ídolos locais possíveis de serem imitados tais como o pioneiro Traçaia ou o atual Rafael Tolói da “azurra”, David Moura no judô, Felipe Lima na natação, Ana Sátila na canoagem etc. Mato Grosso pode ter muitos mais, basta o estímulo oficial que a meninada vai atrás.

     A ascensão do Cuiabá aconteceu pela competência e coragem de seus proprietários e sua diretoria, aproveitando a fantástica Arena Pantanal, recuperada em boa hora pelo governo estadual. Este sucesso do Dourado com o público subitamente apaixonado aponta na direção de uma política estadual para os esportes tendo como polos difusores iniciais a própria Arena, o Aecim Tocantins, o estádio do Liceu Cuiabano, o belíssimo COT, o Parque Aquático e Ginásio na UFMT. Investir no esporte, nos tempos atuais é o caminho mais curto, barato e seguro para a salvação da juventude das garras das drogas, do tráfico, roubo, assassinatos e, também do suicídio, a mais nova praga.     

     Excepcional exemplo, a conquista da Copa passada pela França não foi por acaso como um “dom natural” dos franceses para o futebol, mas resultou de uma política de estado deflagrada em fins dos anos 70 após três eliminações sucessivas do “scratch” gaulês. O governo francês criou um instituto para o desenvolvimento específico do futebol, com centros de treinamento nas periferias das maiores cidades. Política séria, de longo prazo, sem pensar nas próximas eleições, mas no bem do povo francês. Mais que títulos, produziram cidadãos atletas como Matuidi e Mbappé, dentre os outros. Na Croácia, houve algo semelhante quando nos idos de 90 seu primeiro presidente priorizou o esporte para levantar o país após uma guerra. Terceiro lugar na Copa de 98 e vice na de 2018, um país destruído e com quase a mesma população de Mato Grosso. Assim, o sucesso do Dourado bem poderia ser o prenúncio de uma ascensão dourada também para a juventude mato-grossense. 


terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A DIMENSÃO URBANA DE MANSO

 

José Antonio Lemos dos Santos

Não fosse Manso, no dia 15 de janeiro de 2002, exatos 20 anos atrás, teriam passado sob a Ponte Júlio Muller 3.250 m3/s de água, volume superior aos 3.075m3/s da cheia de 1974, de triste memória para os cuiabanos. Inaugurada no ano anterior, Manso foi então logo testada como protetora da cidade contra outras possíveis tragédias, razão inicial da construção da barragem. Embora sucesso total, poucos ficaram cientes. Teria repetido em 2010. Com algum controle posterior da ocupação do solo urbano poderia ter sido uma alternativa de solução definitiva para esse tipo de problema em Cuiabá, e outras cidades. 

     Importante relembrar este acontecimento, em especial aos mais jovens, para destacar que a origem da barragem foi como equipamento de proteção urbana contra inundações após a cheia de 1974, que inundou totalmente a região mais populosa de Cuiabá, formada pelos antigos bairros Terceiro (“de Dentro” e “de Fora”), Ana Poupino e Barcelos. No dia 17 de março daquele ano o rio atingiu na régua linimétrica o nível de 10,87 m servindo de referência para posterior construção da Avenida Manuel José de Arruda, a popular “Beira-Rio”, com seu nivelamento básico na cota 150 metros acima do nível do mar.

      Diziam os antigos que a estação das chuvas em Cuiabá tinha dois picos, um em dezembro/janeiro e outro em março, também chamado de “repique”, por volta do dia de São José encerrando o período chuvoso. As cheias eram aguardadas nessas épocas, ainda que nem sempre as duas com a mesma intensidade. A cheia de São José em 74 foi uma tragédia para a cidade quando esta dava um salto de crescimento em função da inauguração de Brasília. Grosso modo Cuiabá saltaria de 56 mil habitantes em 1960 para 240 mil em 80, e a cidade não estava preparada, após décadas de estagnação. Alguns visionários, verdadeiros profetas já desenvolviam, por exemplo, a ideia do CPA.

     O governo Geisel tomara posse dois dias antes, dia 15, já com a inundação avançada. Logo o ministro do Interior Rangel Reis veio a Cuiabá e tomou duas decisões radicais para a cidade: determinou a demolição do que sobrara dos bairros atingidos, transferindo suas populações para conjuntos residenciais a serem construídos. Perderam-se aí alguns marcos da cultura cuiabana que viraram saudade nas lembranças dos blocos carnavalescos “Sempre Vivinha”, “Coração da Mocidade” e “Estrela Dalva”, por exemplo. Outra determinação do ministro foi a realização de estudos técnicos para evitar tragédias semelhantes em Cuiabá resultando em Manso, em princípio só para reduzir picos de novas enchentes, um “açudão” de proteção urbana. Fosse só este seu objetivo, Manso já teria valido a pena.

     Depois, em 1978 no antigo Minter, a Comissão da Divisão do Estado, da qual eu fazia parte, transformou Manso em um projeto de aproveitamento múltiplo (APM), pioneiro no Brasil para solucionar também a questão energética, na época o principal problema estadual. Com a energização do “açudão”, foram acrescidos os objetivos de regularização de vazão do rio (além de reduzir suas cotas máximas, garantir uma cota mínima de água), a irrigação rural e o abastecimento de água por gravidade para as cidades da Baixada Cuiabana, três barragens a fio d’água rio abaixo, sendo que seu lago poderia também receber projetos de piscicultura, turismo e lazer, ampliados agora com aquicultura e as possibilidades de um parque gerador de energia solar.

     Hoje é comum pensar a APM Manso só como uma usina hidrelétrica, o que seria um erro grave, ainda que sua geração elétrica seja importante garantidor da estabilidade energética ao estado. Mas, não se pode desprezar os demais potenciais do grande empreendimento que, tem nome e sobrenome: APM Manso. E assim deve sempre ser lembrado para um dia ser aproveitado em todas suas dimensões: APM Manso. 


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

CIDADES E TRAGÉDIAS

Charge José Lemos - Baseada em foto da Internet
 

José Antonio Lemos dos Santos

     Em livre exercício de pensar, avanço no Twitter do fim do ano do ministro Gilmar Mendes no qual sugere uma cobrança mais forte aos gestores públicos sobre a questão urbanística nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial quanto às sucessivas tragédias urbanas de cada verão no Brasil. Uma boa base de partida poderiam ser as ocupações de risco em áreas definidas nos municípios pelos seus Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano ou em lei específica para uso e ocupação do solo urbano, e a ideia focal seria que ao final dos mandatos, não alcançando as metas de melhorias estabelecidas em lei, a autoridade pública gestora seja punida na sua condição de elegibilidade com a consequente perda de sua imunidade parlamentar, sem prejuízo de outras penalidades e do direito de defesa.

     E o verão de 21/22 chegou especialmente trágico em vários estados com prejuízos de todos os tipos, inclusive mortes, não só nas áreas urbanas, como em Capitólio, Minas Gerais, a qual, embora similar, foge ao escopo urbanístico deste artigo. Infelizmente, só em momentos dramáticos como este que o assunto recebe alguma atenção pública. Depois tudo é esquecido, até que a próxima tragédia aconteça.

     É claro tratar-se de assunto complexo pelo seu caráter nacional, pelas dificuldades metodológicas e de estruturas técnicas e legais que em grande parte terão que ser criadas em todos os níveis de governo. Mas, mesmo que já devesse estar resolvido há séculos, não se imagina que qualquer iniciativa séria, decidida agora ficará pronta amanhã. O SUS de renome internacional e a própria Lei da Responsabilidade Fiscal ainda estão longe de sua implantação ideal após décadas de suas criações. Também não se pensa, a não ser como instigante utopia, que as tragédias um dia deixarão de existir, mas que se restrinjam aos desastres naturais de fato imprevisíveis tecnicamente.

     Imagino que os instrumentos básicos dessa legislação venham a ser os Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, ou provisoriamente, uma Carta Geotécnica Urbana, e um cadastro nacional das ocupações em Áreas de Risco composto pelos cadastros municipais e estaduais, envolvendo necessariamente os órgãos de Planejamento Urbano e Defesa Civil, amparados por um programa nacional específico destinado a viabilização técnica e financeira das transferências dignas das populações envolvidas para soluções urbanísticas bem concebidas. Repito que não se trata de um projeto de curto prazo, nem barato. Por isso é urgente. Cada ano que passa fica mais atrasado, caro e mortal. Seria um grande avanço se os próximos prefeitos já assumissem sob as novas regras.

     Cidade e Civilização são criações do homem, umbilicalmente ligadas. Uma não existirá sem a outra. A grande ferramenta de segurança para esta convivência é uma outra criação humana: o Estado, criado para manter subjugada a Barbárie, não extinta pelo processo civilizatório. É triste a sociedade brasileira nestes tempos assistir perplexa afloramentos da dimensão bárbara subjacente ao homem civilizado afrontando o Estado oficial desafiando-o ostensivamente, inclusive já lhe abocanhando nacos consideráveis de Poder.

     Comentando o meu artigo anterior, um colega dos mais atuantes e respeitados na área conta sua experiência neste Réveillon em Copacabana, onde após assistir a “16 minutos de fogos de artifício” voltavam para onde se hospedavam quando depararam “com novos fogos de artifício, tão poderosos quanto os patrocinados pelo Estado”, lançados de favelas próximas. E conclui que o poder ostentado por esses “para-Estados” intimidou, quase sepultando todas as suas utopias por esse Urbanismo que teria o poder da transformação e da inclusão que sempre aspiramos. Agarrado a um otimismo que também se esvai, sei que a Civilização já venceu a Barbárie a 5 mil anos atrás e vencerá de novo. A Civilização é a nossa única chance, somos condenados a ela.


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

GILMAR MENDES E RESPONSABILIDADE URBANÍSTICA

Charge: Pof. José Maria Andrade

José Antonio Lemos dos Santos 

     A cidade é o “locus” da Civilização. A Civilização é a condição essencial para a existência da cidade. E o homem civilizado fecha essa tríade civilizatória como seu principal agente. A Civilização é um estágio do desenvolvimento humano em que o homem aceita submeter-se a um arcabouço de leis, normas, costumes, princípios religiosos, morais e outros em favor da vivência coletiva, conjunto cuja obediência passa então a interessar a todos. Sem ele a cidade não funciona, nem a Civilização. Comparo Civilização a uma armadura férrea que aprisiona a Barbárie travestindo o antigo bárbaro em civilizado, armadura da qual tenta sempre escapar destruindo a cidade e a civilização que não lhes são naturais. Por isso os controles civilizatórios, quando legítimos e democráticos, tem que ser fortes o suficiente para se fazerem valer.

     A sociedade brasileira vive um momento em que estão sendo contestados ou mesmo descontruídos seus principais parâmetros civilizatórios. Neste contexto se encontram as cidades brasileiras. De instrumentos de promoção da qualidade de vida humana nossas cidades viraram algozes de seu próprio povo. As últimas tragédias urbanas são a continuidade de todas as outras que se sucedem ao longo de nossa história, já até agregadas aos calendários como tristes expectativas de novas tragédias e dolorosas lembranças. A ciência do Urbanismo é uma conquista da humanidade e uma determinação legal em favor das cidades e de suas populações. Entretanto, a raiz dos atuais males que as afligem está na ausência do Urbanismo ou no descaso oficial com que são tratadas suas indicações técnicas consubstanciadas em instrumentos legais como Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, Leis de Uso e Ocupação do Solo Urbano e Código de Obras, dentre outros.

     A alguns anos os arquitetos e urbanistas, profissionais com competência técnica e legal privativas na área do Urbanismo no país, através de seus Conselhos de Arquitetura e Urbanismo (CAUs) dedicaram redobrada atenção sobre esta triste situação da política urbana nacional que tem implicações negativas e dramáticas nas condições da vida no país, buscando alternativas mais eficazes de intervenção em todas as etapas dos processos referentes ao desenvolvimento urbano. Assim, em 2017, no Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental promovido pelo CAU/BR, o CAU/MT apresentou com ótima receptividade proposta no sentido da criação de um instrumento legal de responsabilidade urbanística em âmbito nacional, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, com previsão de punição aos gestores que descumprirem a legislação urbanística, dando destaque às referentes às ocupações de risco, seja em áreas definidas como tal ou em edificações sem condições de habitabilidade. A ideia é que ao final dos mandatos não havendo melhoras nos respectivos indicadores, a autoridade pública gestora seja punida na sua condição de elegibilidade a cargos públicos, sem prejuízo de outras penalidades. Em 2019 a proposta foi levada ao 1º Encontro Amazônico de Arquitetura e Urbanismo e novamente bem recebida, sendo incluída entre as propostas da “Carta de Macapá”.

      Neste final de ano o ministro Gilmar Mendes abordou ideia similar em seu Twitter com grande repercussão. Até agora, meu ver a mais efetiva proposta nestes dias trágicos, trágicos não pelas águas, mas pela irresponsabilidade pública. Quem sabe o ilustre mato-grossense possa unir os 3 poderes nacionais dando ao povo brasileiro uma legislação de responsabilidade urbanística que permita a antevisão de algum Verão futuro sem tragédia neste país? Em um país onde as leis não são cumpridas, parece chover no molhado criar mais uma para fazê-las obedecidas. Porém, somos condenados à Civilização: ou persistimos e progridamos com ela, ou morremos todos. Não há outra saída.