"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 27 de maio de 2019

CUIABÁ NO RUMO DOS TRILHOS


José Antonio Lemos dos Santos
     Enfim parece que a rota da ferrovia em Mato Grosso volta a passar por Cuiabá. Tento explicar. A partir da virada deste século passou a ser divulgada a falsa ideia de que Cuiabá não teria carga que justificasse uma ferrovia. Uma questão até então indiscutível por ser tão evidente tratando-se Cuiabá de um distante polo regional consumidor e distribuidor de bens trazidos das regiões Sul e Sudeste do país para uma ampla região envolvendo todo o território estadual e mais Rondônia, Acre, sul do Pará e do Amazonas, além do nordeste boliviano. Acrescente-se que desde a antiga Política de Integração Nacional, com seus programas especiais de desenvolvimento, havia a convicção de que em breve a região seria grande produtora agrícola, o “celeiro do mundo”, completando o ciclo das cargas de ida e de volta viabilizadoras dos trilhos. A ferrovia na época não era pensada só como uma esteira para levar produtos primários, mas em especial para trazer o desenvolvimento a custos econômicos e ambientais menores.
     A força de Cuiabá criou então o ainda atual projeto Ferronorte, dos saudosos Domingos Iglésias e Vicente Vuolo, e arrancou a ferrovia dos barrancos paulistas trazendo-a até Rondonópolis. Só que em certo momento essa atratividade passou a ser desacreditada, até ao ponto de ser incutida na cabeça do mato-grossense e de suas lideranças que Cuiabá não gerava cargas para uma ferrovia, transformando o grande projeto em sonho, folclore e até piada. O efeito mais perverso dessa mentira, hoje seria uma “fake-news”, foi o entorpecimento das forças favoráveis ao projeto da Ferronorte, sintetizador dos macro-objetivos de integração e fortalecimento do estado como grande produtor e grande encontro continental intermodal de caminhos tendo Cuiabá como principal polo de articulação. Hoje os projetos mais avançados nas mesas oficiais têm objetivos diametralmente opostos, excluindo Cuiabá e com ferrovias extratoras de matéria-prima para beneficiamento externo, exportando também as chances de agregação de renda e geração de empregos de qualidade no próprio estado. Mas a história muda.
     E o que teria mudado? Primeiro, a empresa que assumiu a concessão remanescente da antiga Ferronorte tem uma subsidiária especializada em transporte de cargas “containerizadas” diversas, cargas estas que recolocam os trilhos no rumo de Cuiabá. Essas empresas desmascararam a grande mentira que entorpecia as forças pela ferrovia em Cuiabá ao informar em alto e bom som que as cargas dirigidas para a Grande Cuiabá para consumo e redistribuição regional giram em torno de 20 milhões de toneladas/ano! Só para comparação, é o mesmo que toda a produção de grãos de Goiás no ano passado e maior que a de Mato Grosso do Sul que foi de 16 milhões de toneladas. Não se trata mais de sonho, nem de folclore ou piada, mas de carga concreta, e muita, que as empresas têm interesse econômico objetivo em transportar e que reanima as forças vivas interessadas até então desalentadas.
     Outro fato importante é o andamento acelerado da chamada Ferrogrão, a ferrovia partindo de Sinop em direção aos portos do Pará, e que de imediato sinaliza para uma competição em termos das cargas que hoje chegam ao maior terminal ferroviário da América Latina, em Rondonópolis. Daí o interesse da empresa concessionária, também proprietária do terminal, em chegar com seus trilhos a Nova Mutum, aproximando-se do centro produtivo do agronegócio no Médio-Norte mato-grossense, com Cuiabá no meio do caminho. Dois importantes fatos, concretos e objetivos, que recolocam Cuiabá no rumo da ferrovia desafiando desde já seus gestores a prepará-la urbanisticamente de forma a otimizar as potencialidades do tão esperado empreendimento.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

POR UM URBANISMO PROTAGONISTA

Número de mortos no desabamento de Muzema chega a 20


                                                                                                            Foto Erica Martin/Photopress/Folhapress
José Antonio Lemos dos Santos
     As cidades brasileiras pedem socorro. Enquanto vão morrendo como “locus” da civilização as nossas cidades matam ou mutilam nas mais diversas formas seus cidadãos, ao invés de evoluírem como ferramentas-mestra de promoção da qualidade de vida de seus habitantes. Na contramão do mundo civilizado a ciência do Urbanismo é desprezada bem como seus especialistas e suas normas integrantes dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano exigidos pela Constituição Federal. Valem nada! Os cidadãos morrem em áreas de risco sob enormes pedras em clara iminência de quedas, em áreas inundáveis indispensáveis aos processos “respiratórios” dos corpos hídricos, em áreas em grande declividade ou outra condição geotécnica imprópria aos parcelamentos, sob barragens instaladas à montante e coladas a núcleos urbanos, ou em rodoanéis traçados desconsiderando seus possíveis impactos sobre a cidade circundada, casos configuradores de um quadro urbanístico trágico que infelizmente que só tende a piorar.
     Como entidade que congrega os profissionais da arquitetura e do urbanismo com competência técnica e legal exclusiva na área do urbanismo no país, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), tanto em nível nacional como em nível das unidades federativas, tem entre suas preocupações principais a busca de maior eficiência e eficácia nas ações orientativas, punitivas e de fomento às boas práticas inovadoras em sua área de atuação conforme determina sua lei de criação. Nesse sentido mantem constante discussão sobre as diversas áreas da profissão e, diante do quadro urbano dramático vivido no país, muito em especial sobre as dificuldades enfrentadas pelo urbanismo em busca de sua afirmação como instrumento de ordenamento das cidades brasileiras e de melhoria na vida de seus habitantes.
     Nesta semana o CAU/BR promove em Brasília o II Encontro Nacional das Comissões Especiais de Planejamento Urbano e Ambiental (CEPUAs) com extensa pauta de trabalho, onde o CAU/MT apresentará através de sua CEPUA propostas específicas de intervenção nesse quadro grave em que vive as cidades brasileiras, propostas desenvolvidas e aperfeiçoadas ao menos desde 2017 quando da realização do I Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental também realizada em Brasília. O objetivo destas propostas é resgatar para o urbanismo o protagonismo que lhe compete nas ações referentes ao desenvolvimento urbano no Brasil pois, apesar de se fazer presente em grande parte dos processos de planejamento das cidades brasileiras, é inegável que de um modo geral tem sido negligenciado durante a aplicação daquilo que planeja e regulamenta, bem como durante as apurações de responsabilidades sobre as sucessivas tragédias decorrentes dessa situação.
     Trata-se de duas proposições. A primeira, trata de uma proposta de deliberação ao CAU/BR no sentido de que os CAU/UFs através de suas CEPUAs se apresentem de imediato nos locais de novas tragédias de caráter urbanístico (indesejáveis, mas, infelizmente muito prováveis), providenciando laudos próprios sobre suas causas e com indicação ao Ministério Público dos possíveis responsáveis. A outra é a proposta de uma lei de responsabilidade com a qual possam ser punidos os prefeitos em cujas administrações sejam descumpridas a legislação urbana repassando ao sucessor a cidade com indicadores básicos piores do que os recebidos. A ideia é que a punição implique na reprovação das contas públicas do mandatário e na sua consequente inelegibilidade. A ideia é que a categoria dos arquitetos e urbanistas não espere mais ser chamada, mas se antecipe assumindo sua grande e intransferível responsabilidade social.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

O ALVARÁ DE OBRAS

José Antonio Lemos dos Santos
     A previsão era escrever sobre o aniversário de Mato Grosso que passou quase despercebido no último dia 09 de maio, contudo um acontecimento inusitado na semana passada forçou a mudança de assunto. O fato envolveu a denúncia da suposta ausência de Alvará de Obras para a ampliação de uma residência em Cuiabá. Tentando um recorte cirúrgico no assunto para ficar apenas no aspecto didático da questão urbanística que é o que interessa aqui, segundo o noticiário, noves fora os desmentidos e mentidos, um vereador teria recebido a denúncia e procurou os setores competentes da prefeitura, onde teria sido comprovada a inexistência do tal Alvará, em função do que teria sido marcada para a manhã seguinte uma visita da fiscalização municipal ao local e, segundo o vereador, com sua presença autorizada.
    Ainda segundo o vereador, no dia seguinte a fiscalização não foi alegando que teria 5 dias de prazo para fazê-lo, e tendo comparecido ao local marcado em frente à obra, resolveu filmá-la externamente fazendo comentários para apresentar as imagens ainda na sessão da Câmara naquela manhã. Eis que durante a filmagem surgiu uma pessoa informando que não poderia filmar tomando-lhe a câmera, o que foi registrado no vídeo. A partir daí o assunto adquiriu outras conotações, com versões prá cá e prá lá, polícia no meio, ficando de lado a questão inicial, que foi a ausência ou não do Alvará de Obras.
     Uso do evento restringindo-me ao lado didático da discussão, aproveitando que justo neste mês fiz dois artigos destacando que a cidade é o espaço da civilização, que por sua vez é condição essencial para a cidade existir com o homem civilizado fechando essa tríade como seu principal agente. A civilização é um estágio da evolução humana em que o homem aceita submeter-se a um arcabouço de instrumentos de controle como leis, normas, costumes, princípios e outros em favor da vivência coletiva, cuja obediência é do interesse de todos. Sem ele, nem a cidade, nem a civilização funcionam.
     O Alvará de Obras é uma ferramenta básica de controle urbano, ainda que possa parecer ao leigo apenas uma firula burocrática na vida do cidadão. Na verdade, o Alvará é considerado a porta de entrada de todos os processos urbanísticos pois através dele qualquer tipo de intervenção física na cidade vai ser registrado após análises que avaliam se a intervenção pretendida obedece aos padrões estabelecidos para a cidade, ou seja, compatibilidade de uso e ocupação do solo,  responsabilidades técnicas devidas, taxas de ocupação, permeabilidade do solo e uma série de outros critérios técnicos. Uma vez realizado, esse registro deveria ir ao cadastro multifinalitário onde estaria disponibilizado em mapas georreferenciados para efeito do planejamento e seu monitoramento, até que venha a ser substituído pelo “Habite-se”, outro instrumento fundamental de controle urbano. Não são firulas.
     O episódio do Alvará de Obras em Cuiabá ocorreu na mesma semana em que se completava 1 mês da tragédia de Muzema com 24 mortos, tragédia evitável, como tantas outras, se a exigência legal do Alvará de Obras fosse cumprida pelos órgãos responsáveis diretamente por sua aplicação ou, indiretamente pela fiscalização de sua aplicação. Não é obrigatório à população em geral saber da importância da exigência do Alvará de Obras, mas cabe aos municípios fazê-la cumprir e às Câmaras e Ministérios Públicos fiscalizar seu cumprimento. Não é à toa que o vereador no centro deste salutar pampeiro é arquiteto e urbanista por formação, meu ex-aluno por sinal. Nem é assintomático que, segundo o noticiário, o dono da residência em ampliação seja o prefeito da cidade, que certamente se interessa em que o caso seja esclarecido.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

RESPONSABILIDADE URBANÍSTICA

                                              Macapá -Fortaleza de São José (Foto José Lemos)
José Antonio Lemos dos Santos
     A cidade é o “locus” da civilização, a civilização é a condição essencial para a existência da cidade e o homem civilizado fecha essa tríade civilizatória como seu principal agente. A civilização é um estágio do desenvolvimento humano em que o homem aceita submeter-se a um arcabouço de leis, normas, costumes, princípios religiosos, morais e outros em favor da vivência coletiva, conjunto cuja obediência passa então a interessar a todos. Sem ele a cidade não funciona, nem a Civilização. Comparo a civilização a uma armadura férrea que aprisiona e condiciona o antigo bárbaro travestindo-o de civilizado, o qual, no entanto, à medida em essa armadura venha a enfraquecer tende a escapar e destruir a cidade e a civilização que não lhes são naturais. Por isso os controles civilizatórios, quando legítimos e democráticos, tem que ser fortes o suficiente para se fazerem valer.
     A sociedade brasileira vive um momento em que estão sendo contestados ou mesmo descontruídos seus principais parâmetros civilizatórios. E neste contexto se encontram as cidades brasileiras. De instrumentos de promoção da qualidade de vida humana nossas cidades viraram algozes de seu próprio povo. As últimas tragédias urbanas são a continuidade de todas as outras que se sucedem ao longo da história de grande parte das cidades brasileiras e que já são incorporadas a seus calendários como tristes expectativas de novas tragédias e dolorosas lembranças. A ciência do Urbanismo é uma conquista da humanidade e uma determinação legal em favor das cidades e de suas populações. Entretanto, a raiz dos atuais males que as afligem está na ausência do Urbanismo ou no descaso oficial com que, de um modo geral, são tratadas suas indicações técnicas consubstanciadas em instrumentos legais como Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, Leis de Uso e Ocupação do Solo Urbano e Código de Obras, dentre outros.
     Os arquitetos e urbanistas, profissionais com competência técnica e legal privativas na área do Urbanismo no país, através de seus Conselhos de Arquitetura e Urbanismo (CAUs), em especial o de Mato Grosso, a alguns anos dedicam redobrada atenção sobre esta triste situação da política urbana nacional que tem implicações negativas e dramáticas nas condições da vida urbana no país, buscando alternativas mais eficazes de intervenção em todas as etapas dos processos referentes ao desenvolvimento urbano. Assim, em 2017, no Seminário Nacional de Política Urbana e Ambiental promovido pelo CAU/BR, o CAU/MT apresentou com ótima receptividade proposta no sentido da instituição federal estudar e formular anteprojeto de lei para a criação de instrumento legal de responsabilidade urbanística em âmbito nacional, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, com previsão de punição aos gestores que descumprirem a legislação urbanística, dando destaque as referentes às ocupações de risco, seja em áreas definidas como tal ou em edificações sem condições de habitabilidade. A ideia é que ao final dos mandatos sejam aferidos os respectivos indicadores e em caso de piora a autoridade pública gestora seja punida na sua condição de elegibilidade a cargos públicos, sem prejuízo de outras penalidades. Semana passada a proposta foi reapresentada no 1º Encontro Amazônico de Arquitetura e Urbanismo realizado em Macapá por iniciativa do CAU local, e novamente recebida com especial interesse, a ponto de ser incluída entre as propostas da Carta de Macapá. Em um país onde as leis não são cumpridas, parece chover no molhado criar mais uma para fazê-las obedecidas. Porém, somos condenados à civilização; ou progredimos nela, ou morreremos. E, de fato, parece não haver outra saída.