"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 20 de março de 2023

AS CHEIAS DE SÃO JOSÉ


José Antonio Lemos dos Santos

     Para os antigos a estação das chuvas em Cuiabá tinha dois picos, um em dezembro/janeiro e outro em março, também chamado de “repique”, por volta do dia de São José quando encerrava o período chuvoso. As cheias eram aguardadas nessas épocas, ainda que quase sempre ocorrendo com intensidades diferentes. O último dia 17 de março marcou os 49 anos do dia da cota máxima da cheia de 1974 em Cuiabá, chegando a 10,87 metros, desabrigando milhares de pessoas nos antigos bairros do Terceiro (“de Dentro” e “de Fora”), Barcelos e Ana Poupino, conjunto de bairros que formava a região mais populosa da cidade. A cheia de São José naquele ano foi uma tragédia para a cidade logo quando esta dava um salto de crescimento decorrente da inauguração de Brasília, dentre outros fatores. Grosso modo Cuiabá saltava de 56 mil habitantes em 1960 para 240 mil em 80. Um crescimento para o qual a cidade não estava preparada, nem seus cidadãos, nem seus governantes. Ninguém entendia quando alguns visionários, verdadeiros profetas propunham a necessidade de preparar a cidade para aquela expansão.

     A calamidade daquela cheia serviu para dar uma sacudida nas autoridades. O governo Geisel tomara posse dois dias antes já com a inundação avançada. De imediato o ministro do Interior Rangel Reis veio a Cuiabá e tomou duas decisões radicais marcantes para a cidade e que não podem ser esquecidas. Determinou a demolição do que sobrara dos bairros atingidos, transferindo suas populações para conjuntos residenciais a serem construídos, e foram construídos, um deles o Novo Terceiro. Nesse processo perderam-se alguns marcos da cultura cuiabana que viraram saudade nas lembranças dos blocos carnavalescos “Sempre Vivinha”, “Coração da Mocidade” e “Estrela Dalva”, por exemplo.

     Outra determinação do ministro foi a realização de estudos técnicos para evitar novas tragédias semelhantes em Cuiabá. Daí resultou Manso, em princípio só para evitar novas enchentes, um “açudão” de proteção urbana. Embora pouco divulgado, Manso cumpriu essa função ao menos em 2002 e 2010 impedindo que volumes de água superiores aos 3.025 m³/s de 74 chegassem a Cuiabá. Seria ótimo Furnas informar se aconteceram outros volumes maiores que o de 1974. Fosse só este seu objetivo, Manso já teria valido a pena.

     Já em 1978, no antigo Minter, a Comissão da Divisão do Estado, da qual tive o privilégio de participar, propôs a transformação de Manso em um projeto de aproveitamento múltiplo (APM) de barragem, então pioneiro no Brasil para solucionar também a questão energética, na época o principal problema estadual. Junto com a energização do “açudão”, foram acrescidos os objetivos de regularização de vazão do rio, garantindo cotas mínimas e máximas, prevendo ainda o abastecimento urbano de água e irrigação rural para a Baixada Cuiabana, três barragens a fio d’água rio abaixo, sendo que seu lago poderia também receber projetos de piscicultura, turismo e lazer. Até hoje Manso enquanto APM está subutilizado.

     Ainda há quem pense que Manso foi construída para gerar energia, o que seria um absurdo pela dimensão de seu lago, maior que a Baía da Guanabara e 10 vezes o Lago de Brasília gerando apenas 210 MW. Com Manso segurando o rio, e um bom gerenciamento da ocupação das Áreas de Risco segurando a força dos córregos, Cuiabá pode oferecer condições de segurança à sua população nos períodos chuvosos. Ao contrário do que se vê na maioria das cidades brasileiras, com tragédias a cada verão sempre tratadas com soluções paliativas e projetos pontuais que quase nunca saem do papel antes da próxima tragédia. Teria sido apenas uma questão de sorte Cuiabá pegar um governo recém-empossado que, talvez querendo evitar que uma tragédia urbana mal enfrentada manchasse sua imagem logo em seu início, propôs então uma abordagem abrangente, numa escala mais adequada com bons resultados até hoje