"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



terça-feira, 24 de novembro de 2009

PRESSÃO MÁXIMA

José Antonio Lemos dos Santos

     Não que seja necessário um teste dessa envergadura para avaliar as condições de mobilidade de uma cidade, assim como não se pode usar um fósforo para ver se há gasolina em um tanque de combustível, como diz a velha piada. Mas, aproveitando a realização do mega-concurso para cargos públicos no estado – ou a tentativa de fazê-lo – seria oportuno que as autoridades incumbidas da preparação da cidade para a Copa do Pantanal requisitassem os dados e mapeamentos do trânsito, transporte coletivo, hotelaria e atendimentos médicos de emergência do dia do evento em Cuiabá e Várzea Grande para a confirmação, ajustes ou correções em suas análises técnicas.
     De fato foi um grande evento com seus 275 mil candidatos, talvez subestimado em sua potencialidade de impactância urbana, especialmente para Cuiabá e Várzea Grande, que estimo terem ficado com cerca de 180 mil concorrentes. Os inscritos locais ganharam a companhia dos muitos que vieram de diversos pontos do país, criando aquela que talvez tenha sido a maior demanda concentrada temporalmente sobre a rede viária e de transportes públicos das duas cidades, tendo como focos os pontos específicos de realização das provas. Proporcionalmente à população total da Grande Cuiabá, um número muito grande de pessoas em um só evento, permitindo uma valiosa e extraordinária observação real das respostas da estrutura urbana submetida a uma pressão máxima de demanda. Independente dos problemas que, infelizmente, envolveram o concurso, trata-se de uma chance ímpar para se avaliar a cidade em relação aos seus limites atuais de mobilidade.
     Pessoalmente tive a oportunidade de viver essa experiência, pelo lado de dentro. Como urbanista e estudioso da cidade, fiquei extasiado vivendo os papéis de observador e cobaia em um imenso laboratório, o que certamente deve ter mascarado tudo aquilo que eu sentiria se eu estivesse ali apenas como cidadão. Meu filho e sua esposa vieram de Brasília para participar do concurso. Com filhos pequenos, nos deram a alegria de trazer os netos. Minha filha mais nova também se inscreveu. Tive então que levá-los e buscá-los em seus locais de prova, em pontos diferentes da cidade, em Cuiabá e em Várzea Grande, percorrendo diversas vias estruturais e principais da cidade, dirigindo por umas três horas e gastando cerca de meio tanque de combustível.
     Em um breve e livre relato do meu trajeto, começo pelo lado bom de não ter visto nenhum acidente, nem aglomerações nos abrigos de ônibus, surpreendendo-me ainda a tranqüilidade dos motoristas na observação das faixas de rolamento e semáforos, bem como na parcimônia do uso da buzina. Nenhum xingamento. Por outro lado vi apenas uma viatura policial, que não era de trânsito e senti falta de placas com os nomes dos logradouros públicos dificultando a localização, em especial em Várzea Grande. Ressalta-se a gravidade da ausência quase que geral de calçadas, colocando os transeuntes em risco de vida na disputa com os veículos por um naco das pistas de rolamento.
     Como era esperado, porém, os pontos de engarrafamento deram a tônica, em especial na Avenida Fernando Correia e Miguel Sutil, mas com destaque negativo para a Avenida da FEB, Alzira Santana e a rótula do Praeirinho, paralisando a Ponte Sérgio Mota. Escapei arriscando-me a sair pela Alameda Júlio Muller, que para a minha surpresa encontrava-se livre, inclusive em sua conexão com a Avenida da FEB, a partir da qual pude observar desobstruídas a XV de Novembro e a Tenente Cel. Duarte, esta livre de engarrafamento até a Dom Bosco. Um estudo sistemático destas ocorrências poderia ser muito útil.
(Publicado pelo Diário de Cuiabá em 24/11/2009)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

A VEMAGUETE

José Antonio Lemos dos Santos


     A Copa do Pantanal é a grande chance de Cuiabá dar um salto em seus padrões de qualidade graças aos investimentos públicos e privados que a preparação do evento mobilizará. E o que mais se discute hoje são as obras, o porquê destas e não outras, os riscos da corrupção, etc., em um processo que deve continuar com a participação crescente, positiva e efetiva da população, não só nesta etapa de definição dos projetos quanto na fiscalização e acompanhamento das obras.
     Entretanto, qualquer cidade saudável - e a tricentenária Cuiabá esbanja vitalidade – é uma imensa obra em construção cotidiana pelo seu povo, ao construir cada casa - mansão ou barraco - borracharia, escritório, padaria, fábrica, oficina, etc. Ao contrário do que às vezes parece, quem constrói as cidades não são os prefeitos, os governadores, ou os presidentes, ainda que o setor público seja fundamental, responsável pelas obras e serviços indispensáveis de interesse comum que não podem ser desenvolvidos individualmente. Estes são como os ossos de um corpo, que suportam as milhões de células que constroem os músculos e órgãos que de fato formam cada ser único. Assim, é importante que as autoridades sigam buscando viabilizar as grandes obras públicas, sem esquecer que nem só delas vive uma cidade.
     Mais que tocar obras a principal função pública urbana, em especial a dos prefeitos, é a de ser o coordenador, o gestor da grande obra que é a cidade, definindo democraticamente o seu projeto, que é o Plano Diretor, aperfeiçoando-o constantemente e fazendo-o ser executado através de suas leis e normas, por toda a população e pelos próprios órgãos públicos. Sem controle em seu crescimento, as cidades viram o caos da realidade urbana brasileira. Por isso as prefeituras têm que ser antes de tudo máquinas gestoras, não só para planejar, mas também para executar o que foi planejado, saindo do papel para a realidade. Desse modo, as cidades já seriam ampliadas ou renovadas de forma organizada, conforme planos tecnicamente elaborados, resultando em produtos de muito melhor qualidade, por um custo muito menor.
     Com recursos praticamente mínimos em relação às grandes obras, também necessárias, os governos federal e estadual poderiam apoiar as prefeituras em suas estruturas de gestão urbana. Já pensaram se estivesse sendo aplicada desde sua promulgação em 1992 o Código de Posturas que estabelece padrões mínimos para as calçadas de Cuiabá, obrigando os proprietários a construí-las e mantê-las, inclusive as dos imóveis públicos? A cidade com certeza seria outra. A calçada é o nível mínimo da civilidade, e hoje, infelizmente, as calçadas da Grande Cuiabá, quando existem, parecem mais pistas de obstáculos do que passeios públicos, com automóveis, rampas, piso escorregadio, materiais de construção, etc. Tudo proibido pela lei.
     E que dizer da Lei 3870 que desde 1999 estabelece larguras mínimas para cada uma das ruas de Cuiabá, definindo os afastamentos frontais para novas construções, que se estivesse sendo aplicada seria hoje de grande utilidade no alargamento de muitas das vias que se encontram engarrafadas? E as regras para circulação de cargas na cidade, estabelecida pela Lei Complementar 103, desde 2003? Investir na gestão urbana, em especial na fiscalização urbana, seria um dos investimentos prioritários para Cuiabá e Várzea Grande. Nossa máquina de gerenciamento é antiga e carece de pessoal, equipamentos e estrutura. Para quem conheceu as Vemaguetes, é como estar em uma delas numa corrida de Fórmula 1. Ainda que tardia, a aplicação da legislação urbanística renderá ótimos resultados. Por uma bagatela.
(Publicado pelo Diário de Cuiabé em 17/11/2009)

terça-feira, 10 de novembro de 2009

BONITAS, MAS ENGARRAFADAS

José Antonio Lemos dos Santos


     Ainda que questionada em suas proposições, a Carta de Atenas, base do urbanismo modernista, continua válida em sua análise sobre as cidades. Ela identifica na moradia, trabalho, lazer e circulação as quatro funções básicas da cidade, destacando a moradia como a primeira delas e a circulação como a última, afirmando, contudo que a circulação deve ter o objetivo de estabelecer uma comunicação proveitosa entre as outras três. Ou seja, ainda que citada como a última das funções, na prática torna-se tão importante quanto as outras já que estas só funcionam articuladas entre si pela circulação.
     As cidades brasileiras, em especial Cuiabá e Várzea Grande – a Grande Cuiabá - mostram muito bem essa complexidade que hoje só pode ser entendida em uma nova visão holística do urbanismo. Ainda que um objeto artificial, a cidade é um objeto vivo, muito mais orgânica que mecânica, integrada em componentes que extrapolam ao físico, indo além da soma de suas partes e aproximando o urbanismo da biologia e da medicina. Cada cidade é única e como em um corpo vivo, nelas também não são corretas intervenções isoladas da compreensão do todo.
     Um dos problemas mais destacados hoje na Grande Cuiabá é o do trânsito, especificamente o de veículos automotores, um dos componentes da circulação de que nos fala a Carta de Atenas. Comparando à medicina, a cidade com trânsito crítico é similar a um organismo hipertenso prestes a entrar em colapso. Mas, aqui como na maioria das cidades brasileiras, é bem pior que isso, já que o caos do trânsito se repete na segurança, saúde, educação, saneamento, habitação, etc. indicando um quadro de avançada metástase urbana, mais do que um problema específico setorial. No fundo, o caso é de má gestão das cidades, sem a seriedade devida, aqui como no país inteiro.
     Em geral a situação do trânsito decorre de externos e internos, uns mais outros menos sujeitos à intervenções locais. A começar pela política nacional de desenvolvimento baseada na indústria automobilística, em contraste com a falta de qualquer esforço federal de promoção efetiva do transporte coletivo. Este quadro é agravado localmente com o êxito dos motores flex em um estado onde o preço do álcool é um dos menores do país, segurando o preço da gasolina, enquanto encarece o diesel do ônibus. O engarrafamento cotidiano situa-se nesse velho quadro verde-amarelo, agravado por novas nuances.
     Baixando ao reino das ações locais possíveis, dentre as muitas, a mais importante é o aumento da vascularidade urbana, priorizando o transporte coletivo e o pedestre, com a reciclagem das vias atuais, a implantação de trechos da malha urbana existentes apenas no papel, mas, principalmente, a ampliação do sistema viário através da criação de novas avenidas. À luz da visão total da cidade, destacam-se três novas avenidas urgentes. A primeira é uma avenida-parque margeando e protegendo o córrego do Barbado, ligando o Coxipó ao CPA. A segunda é a ligação da Avenida Beira-Rio ao Coxipó, via São Gonçalo Beira-Rio, com uma nova ponte sobre o Coxipó e a terceira é a ligação do Sucuri ao Trevo do Lagarto, com uma nova ponte sobre o rio Cuiabá.
     A ampliação do sistema viário é a resposta lógica ao aumento extraordinário da frota de veículos em uma malha viária que não foi ampliada e encontra-se em condições precárias de manutenção, trabalhando além de sua capacidade. É a garantia de fluidez viária contínua e segura sem a qual ficam sem sentido os investimentos em algumas avenidas da cidade anunciados para a Copa. Poderão ficar mais bonitas, mas continuarão engarrafadas.
(Publicadi oelo Diário de Cuiabá em 10/11/2009)