"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



terça-feira, 9 de março de 2010

O SENHOR DAS ÁGUAS

José Antonio Lemos dos Santos


     Penso que a melhor maneira de homenagear nas poucas linhas de um artigo uma figura tão rica como Domingos Iglesias Valério, seria relembrar uma de suas muitas lições. Nunca fui seu aluno, mas sempre o tive como um mestre no desenvolvimento de Cuiabá e Mato Grosso, jamais se omitindo mesmo sob o risco da polêmica, como homem que entendia que o conhecimento só tem sentido se compartilhado, como demonstrou ao longo da vida, sempre em prol da gente e da terra que adotou com tanto fervor. A socialização do conhecimento em todas as suas dimensões, não apenas o técnico, o compartilhamento, bem pode ter sido sua principal lição. Mas, nesta pequena homenagem, destaco no campo do urbanismo uma das lições de maior utilidade em minhas funções públicas, e que me parece da maior importância não só para Cuiabá, mas para todas as cidades do Brasil, das vilas às metrópoles.
     Nos bancos escolares uma coisa é você ter recebido aula de uma determinada matéria e tê-la em seu currículo. Outra coisa é você entender de fato o que foi aprendido oficialmente. Foi com o “professor Iglesias” - como carinhosamente conhecido - que entendi na prática o conceito das áreas de risco inundáveis, que ele chamava de “império das águas”. Quando colocadas nas lições escolares ou nas letras frias das tantas leis que tratam do assunto no Brasil, as áreas de risco, notadamente às ligadas às águas, parecem perder muito da sua periculosidade, de sua potencialidade de dano, problema só percebido por ocasião das tragédias. Com a expressão “império das águas” o professor, falecido no sábado, ensinou que as áreas inundáveis são os espaços naturais das águas, indispensáveis à sua existência, pois, continuando em sua lição, os corpos d’água respiram como seres vivos que são, como se inspirassem nas cheias e expirassem nas vazantes.
     Até aqui, uma forma bonita de se falar sobre as águas. Esta lição, porém, tem uma outra parte, a parte dura. Por trás de sua extrema docilidade, maleabilidade e generosidade para com a vida, a água é poderosa, e pode ser muito cruel e impiedosa na defesa das áreas que fazem parte de sua existência e integridade. Além das notificações e das multas administrativas oficiais, se fosse possível estas punições da natureza também deveriam estar nas leis pois os homens insistem em fingir não conhecê-las, talvez pela sua prepotência tecnológica ou pelo pouco caso com a vida, principalmente pelas dos outros. Só se lembram quando cobrados cruelmente a cada período de chuvas. E aí as lágrimas de crocodilo, culpando São Pedro ou alegando uma falsa falta de planejamento. Senhor dos segredos da águas dos nossos rios, o professor Iglesias dizia que não eram os rios que invadiam as cidades, mas as cidades que invadiam os rios.
     Quando na Defesa Civil do Estado ele chegou a propor uma marcação física para a “cota de emergência” ao longo do rio Cuiabá, numa tentativa de alertar aqueles que pretendessem se instalar nessas áreas. Para o setor público o recado seria que as ocupações abaixo dessa cota seriam da responsabilidade dos prefeitos, que têm por obrigação impedi-las, como mandam as leis. Seria como um freio a esse processo criminoso de ocupação de áreas de risco. Seguindo a idéia em uma das minhas costumeiras sessões de elocubrações livres, cheguei a pensar que as cidades brasileiras devessem fixar um passivo de ocupações de risco, e cada administrador, com penas previstas em lei, teria a obrigação de não permitir a ampliação, bem como de reduzi-lo a cada gestão, com base em metas de redução de longo prazo estabelecidas nos planos diretores. Mas, de que adiantaria mais uma lei em um país que prefere chorar as catástrofes a cumprir a legislação urbanística?
(Publicado pelo Diário de Cuiabá em 09/03/10)

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