"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 26 de agosto de 2019

QUEIMADAS "HERE", INCÊNDIOS "THERE"

      As tragédias como esta na Califórnia, sensibilizam os brasileiros. (imagem: oglobo. globo.com)

José Antonio Lemos dos Santos
     O título deste artigo se refere à “Farms here, forests there”, nome de uma poderosa organização de fazendeiros americanos defensora da descabida ideia de que as fazendas devem ficar lá com eles e as florestas com os pobres, principalmente com o Brasil, o único com reais chances de concorrer em breve com os EUA no comércio mundial de alimentos. Antes que alguém possa entender diferente, faço outro esclarecimento. Sou pelo desenvolvimento sustentável com democracia, justiça social, respeito aos patrimônios histórico, ambiental e cultural de todos os grupos legítimos e, por conseguinte, contra o progresso destrambelhado a qualquer custo. Em especial aquele a custo da destruição da natureza, e mais especialmente ainda a custo da floresta amazônica ou do cerrado, até porque sou cuiabano e moro em Cuiabá imerso nesse ambiente centro continental de características extremas, porém tão generoso em oportunidades de desenvolvimento para uma vida local civilizada e cada vez mais produtiva em termos de elementos essenciais para a vida da população do planeta.
     Neste artigo quero compartilhar uma dúvida que me persegue há muito tempo e o momento parece propício para colocá-la, agora que o mundo todo se diz preocupado com a proteção da Amazônia brasileira, com sinceridade ou não. Por que o fogo nas florestas dos países desenvolvidos é tratado como “incêndio florestal” e em nossas florestas é tratado como “queimada”? O assunto me faz lembrar o Projeto Humboldt dos primórdios da UFMT que tinha como objetivo orientar cientificamente a ocupação da Amazônia que se iniciava. Quanta bobagem teria sido evitada se esse projeto tivesse prosseguido.
     “Incêndio florestal” e “queimada” me parecem conceitos diferentes, pois se fossem iguais os dois seriam usados indiscriminadamente tanto para nós quanto aos desenvolvidos, o que não acontece. Sempre os de lá são “incêndios” e os daqui “queimadas”. Sempre. Queimadas “here”, incêndios “there”. Não haveria algum tom discriminatório nessa diferença de tratamento? Ignorante no assunto e, portanto, com base apenas no bom senso, alguma leitura técnica e na cultura internética, aprendi que o fogo que agride nossas florestas não tem apenas uma origem mas diversas que se agrupariam em 4 linhas, naturais, técnicas, acidentais e criminosas, as quais a meu ver porém, em última instância, poderiam ser resumidas em apenas duas, inocentes e criminosas. Daqui talvez venha essa distinção de tratamento entre o fogo de lá e o de cá, as queimadas “here” e os incêndios “there”.
     Os “incêndios florestais” civilizados sempre despertam em nós a solidariedade, tristeza, compaixão pelas tragédias maiores ou menores que possam causar. Lembram daquele triste incêndio em Portugal há alguns anos? Não houve dentre nós quem não tivesse se condoído, e com razão, e muita razão, com nossos irmãos portugueses e até com a fauna e flora de lá sacrificadas. O mesmo sempre se dá com os frequentes “incêndios florestais” da poderosa Califórnia, quando ficamos também preocupados com as mansões dos grandes astros e big-shots de Hollywood, muito mais do que eles próprios. Já para nossas “queimadas” nenhum telegrama, uma corbeille ou lágrima, nem de crocodilo. Imediatamente são acompanhadas de críticas ao povo que “toca fogo” na mata por ignorância ou ambição desmedidas. Na leitura do senso comum, “incêndio florestal” sugere um acidente natural em que o homem aparece como vítima. Já “queimada”, por outro lado, sugere o fogo aplicado por alguém, a natureza como vítima e o homem como bandido, e assim a soberania brasileira sobre a Amazônia vai se tornando inconfiável, que é o que de fato querem os grandes interesses internacionais.

O tít

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

URBANISMO, CAMELOS E CAVALOS

José Antonio Lemos dos Santos
     Que Ele em sua clemência me perdoe por usar Seu santo nome nesta piadinha didática dos distantes anos de faculdade e que vou tentar contar tal como me foi contada. Diz a piada que nos tempos da Criação o camelo era para ser um cavalo e, na sua preocupação perfeccionista, Deus convocou os maiores especialistas em cada setor daquele importante projeto. Assim contratou os maiores sábios em cabeças, pescoços, pernas, rabos, barrigas etc. que fizeram isoladamente aquilo que seus conhecimentos recomendavam como o melhor em cada uma de suas respectivas tarefas. Só que na hora de juntar as partes deu aquele animal todo troncho, dando uma impressão desconjuntada e desarmoniosa, com a cabeça parecendo menor do que deveria ser, o pescoço e o rabo encaixados em pontos errados, as pernas de traz para frente... Em sua bondade o Criador optou por manter aquele não esperado animal. Mas insistiu na criação do cavalo, só que desta vez chamando um arquiteto, que por formação é também urbanista, como sempre terá que ser. Aí saiu o cavalo, elegante, bonito, lépido e harmonioso.
     Assim é com a cidade. Não se admite mais cada setor fazendo sua parte, mesmo que o melhor, fora de uma visão de todo o conjunto. Em nossa cabeça analítica ela é decomposta em facetas para facilidade de compreensão e de intervenção, mas só na nossa cabeça, pois na verdade a cidade é um complexo composto por partes que se integram em uma espécie de organismo vivo que se transforma com o tempo,  onde o todo funciona através das partes, e não funcionará direito se todas as suas partes não funcionarem bem. Mais que isso, as partes geram entre si uma poderosa sinergia fazendo com que conjunto resulte com muito mais qualidades que a soma das qualidades de suas partes. Esta é uma de suas maiores belezas e mistério. Daí que cada cidade é única em sua formação e evolução, exigindo estruturas técnicas permanentes, especializadas em seu todo e em suas partes para que possam acompanhá-la e conhecê-la em suas manhas e características próprias.
     Gosto muito da comparação da cidade com o corpo humano e do urbanista com o médico. Por exemplo, podemos comparar o sistema circulatório humano com o sistema viário urbano. Embora em ambos o ideal seja a fluidez permanente, muitas vezes temos casos de estrangulamentos que podem levar o conjunto ao colapso e então tornam-se necessárias intervenções emergenciais tipo uma ponte de safena ou um viaduto, seu similar urbano. Porém, resolvida a emergência, se o médico for um bom médico ele te explicará que ter escapado desta não significa que escapará da próxima. Daí vai orientar que a solução para o seu caso será o tratamento do corpo por inteiro, com exames gerais, diagnósticos e tratamentos diversos que podem ir da redução de peso até a mudanças de hábitos, alimentação e outros. No caso do viaduto é igual. Uma vez resolvido o problema emergencial do estrangulamento, a solução completa estará no tratamento da cidade como um todo, com exames gerais e diagnósticos observando a questão do uso e ocupação do solo, a distribuição de infraestrutura, serviços e equipamentos, reestruturação viária, etc. Aí é insubstituível o papel do urbanista, atribuição exclusiva que lhe é assegurada por lei. Ele vê o conjunto.
     Nesse contexto o urbanista deve ter a formação de um generalista e estar preparado para o trabalho multidisciplinar. Precisa conhecer de cada área o bastante para saber pedir aos especialistas aquilo que a cidade precisa, com as características e dimensionamentos corretos de forma que a cidade pretendida não resulte em um camelo, mas que seja funcional e bela capaz de oferecer qualidade de vida para sua população com conforto, segurança, sustentabilidade e justiça social.

Que E

terça-feira, 13 de agosto de 2019

O ALVARÁ DE OBRAS II

José Antonio Lemos dos Santos
     Lembrando o grande Odorico Paraguassu, com a alma lavada e enxaguada nas águas vitoriosas dos últimos jogos do Cuiabá na série B do Campeonato Brasileiro e Copa Verde, e dos atletas mato-grossenses nos Jogos Pan-americanos de 2019, retomo a controvérsia do Alvará de Obras tratado em artigo de maio passado. Recordando o noticiário, o fato envolveu a denúncia de ausência de Alvará de Obras para a ampliação de uma residência em Cuiabá. Segundo o noticiário, “noves fora” os mentidos e desmentidos, um vereador teria recebido a denúncia e buscou os setores competentes da prefeitura onde teria sido comprovada a inexistência do tal Alvará. A partir desta constatação teria sido marcada para a manhã seguinte uma visita da fiscalização municipal ao local e, segundo o vereador, com sua presença autorizada.
    Ainda segundo o vereador, no dia seguinte a fiscalização não compareceu e estando em frente à obra denunciada como combinado, resolveu filmá-la por fora fazendo comentários para levar as imagens ainda na sessão da Câmara daquela manhã. Eis que na filmagem surgiu uma pessoa dizendo que não poderia filmar e lhe tomou a câmera, o que foi registrado no vídeo postado nas redes sociais. A partir daí o assunto descambou com versões de todo lado, ofuscando a questão inicial: a existência ou não do Alvará de Obras. Agora, no começo de agosto a Câmara Municipal instaurou processo contra o vereador pedindo sua cassação por quebra de decoro parlamentar, atendendo representação do Sindicato dos Agentes Fiscais da Prefeitura. Tentarei me restringir ao aspecto didático do urbanismo, que interessa aqui.
     A cidade é o espaço da civilização, que por sua vez é condição essencial para a cidade existir, tendo no homem civilizado o fechamento da tríade civilizatória. A civilização é um estágio da evolução humana em que o homem aceita submeter-se a um arcabouço de instrumentos de controle como leis, normas, costumes, princípios e outros em favor da vivência coletiva, cuja obediência é do interesse de todos. Sem ele, nem a cidade, nem a civilização funcionam.
     O Alvará de Obras é uma ferramenta básica de controle urbano, ainda que possa parecer ao leigo apenas uma firula burocrática na vida do cidadão. O Alvará é a porta de entrada de todos os processos urbanísticos pois através dele qualquer tipo de intervenção física no espaço urbano vai ser registrada após análises que avaliam se a intervenção pretendida obedece aos padrões urbanísticos estabelecidos para a cidade. Uma vez realizado, esse registro deve alimentar um cadastro multifinalitário a ser disponibilizado em mapas georreferenciados para efeito do planejamento e seu monitoramento, até que venha a ser substituído pelo “Habite-se”, outro instrumento fundamental de controle urbano. Não são firulas.
     O episódio do Alvará de Obras em Cuiabá ocorreu na mesma semana em que se completava 1 mês da tragédia de Muzema no Rio de Janeiro com 24 mortos, drama evitável como tantas outras se a exigência legal do Alvará de Obras fosse cumprida. Embora seja compreensível que a população em geral desconheça a importância do Alvará de Obras, cabe aos municípios cumpri-lo e às Câmaras e Ministérios Públicos fiscalizar seu cumprimento. Não é à toa que o vereador no centro deste contraditório é arquiteto e urbanista por formação, meu ex-aluno por sinal, nem é à toa que o proprietário da residência em ampliação seja o prefeito municipal, que já afirmou à imprensa dispor do Alvará. Assim, tudo parece fácil de ser resolvido com grande efeito educativo sobre uma das mais importantes ferramentas do urbanismo. E esta discussão, se civilizada, poderá acabar sendo muito útil à cidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

CAECAE, A PRACINHA E A CAPELA

Foto José Lemos
José Antonio Lemos dos Santos
Escrevo Caecae tal qual grafou Joaquim Ferreira Moutinho testemunha da tragédia da varíola de 1868 em Cuiabá, e que mesmo sofrendo-a na própria família teve força suficiente para descrevê-la depois em livro. Em trechos de sua narrativa comentou: “O anjo da morte continuava incansável a sua obra de destruição. A polícia mandou arrombar as portas de muitas casas para proceder-se ao enterramento de famílias inteiras que eram encontradas já em estado de putrefacção. O número dos mortos, crescendo extraordinariamente, montou a mais de duzentos por dia. A atmosfera da cidade estava viciada de um fétido nauseabundo que a viração do campo não conseguia dissipar, porque vinha também carregada de miasmas que exalavam de centenas de corpos que lá se achavam espalhados.(...) O chefe de polícia já neste tempo havia dado ordens para que sepultassem os corpos no celebre carrascal do Caecae, onde se reproduziam as cenas de horror começadas na cidade. (...) Hoje (quando escreveu) está esse lugar murado e ornado de uma capelinha sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo; mas raríssimas são as pessoas que sabem em que parte desse cemitério descansam os restos mortais de suas famílias.” Pior, no Século XXI, raríssimos sabem sequer do antigo cemitério, ou da própria guerra.
     Dedicada à mesma padroeira, a humilde capelinha foi substituída por uma igreja de alvenaria, ainda que modesta, mas suficiente para abrigar também uma creche filantrópica. Parte do campo santo foi transformado em uma moderna e movimentada avenida e o restante virou praça. O conjunto encontra-se em importante interseção viária da cidade onde está em construção uma nova rotatória, obra da Copa 2014 retomada pela atual administração estadual, e onde também se encontra as obras de um grande edifício residencial.
     Evidente que há muito tempo Cuiabá deve um tratamento especial a esse lugar histórico e sagrado, repouso de tantos heróis da guerra e de tantas vítimas inocentes que nada tinham a ver com ela. Um lugar que clama por um marco a lembrar um momento de dor e bravura, um monumento à Paz e não à guerra, dedicado a todos os heróis, irmãos e hermanos vítimas de uma mesma guerra, a ser lembrada para jamais ser repetida. Os arquivos do antigo IPDU da prefeitura de Cuiabá devem guardar ainda alguns estudos das décadas de 80 e 90 nesse sentido.
     A proposta ganhou novo folego com a Copa do Pantanal e a  possibilidade de tantas obras para a cidade, bem como com a coincidência da abertura do grande evento marcada para o dia 13 de junho, mesma data em que se lembra a Retomada de Corumbá pelas tropas cuiabanas do Exército Brasileiro, episódio que culminou com a contaminação dos soldados com o vírus da varíola, ao final trazido para Cuiabá com  o retorno dos “vitoriosos”, origem da dramática história do Caecae. Reforçava-se então a proposta de um Monumento à Paz, a ser inaugurado no mesmo dia da abertura da Copa, que por sua vez também passou e de novo a ideia não foi para frente.
     Agora uma nova convergência de interesses pode ser outra oportunidade de se retomar a justa homenagem ao nosso campo santo. O muro de arrimo do edifício em construção ruiu trazendo junto quase a igrejinha inteira. Felizmente sem vítimas, tudo seguido na hora pela Igreja e Construtora. Ao mesmo tempo é retomada a obra da rotatória da Avenida 8 de Abril com a Thogo Pereira, lindeira à igreja, e a prefeitura começa a reformar a pracinha. Sonhar não ofende e ainda não custa nada, nem paga imposto. Seria demais pensar em todo esse conjunto de obras convergindo em um só projeto urbanístico harmonioso e digno para o Caecae, e contemplando também o Monumento à Paz?