"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 21 de novembro de 2022

FERROVIA E GATO ESCALDADO

José Antonio Lemos dos Santos

     A ligação de Cuiabá ao sistema ferroviário nacional surge no II Império com a Guerra do Paraguai e vem avançando aos trancos e barrancos vencendo imensos desafios, alguns físicos como a ponte sobre o Rio Paraná (1996), outros políticos ou financeiros, sempre tendo como chamariz a capital mato-grossense, seu objetivo original até hoje não alcançado. O início efetivo de sua realização se deu em 1905, com as obras da ferrovia Noroeste do Brasil, que, como indica o próprio nome teria rumo Noroeste, direção de Cuiabá saindo de São Paulo. Porém, já em 1907 o destino dos trilhos foi mudado para Corumbá. Na nova direção, às margens do Rio Paraguai havia uma grande fazenda de erva-mate de um dos homens mais poderosos do Brasil, ministro da República, cuiabano. Nada contra Corumbá, aliás a redenção de Mato Grosso sempre foi a abertura de caminhos a todos os rincões, em todos os modais. A exclusão premeditada é o mal. Mas, foi um grande golpe para Cuiabá, uma punhalada, a primeira das que se sucedem até hoje. 

     O assunto foi retomado na metade do século XX pelo saudoso Vicente Emílio Vuolo que incluiu o trecho no Plano Viário Nacional (PNV). Após grande luta as obras foram iniciadas em 1991 a partir de Santa Fé do Sul(SP), operando seu primeiro trecho em 1998 e chegando em 1999 a Mato Grosso, em Alto Taquari. De lá os trilhos avançaram a Alto Araguaia, Itiquira e em 2013 a Rondonópolis. Tudo aparentava estar bem. Contudo, só aparentava. Em fins de 2008 tinha sido criado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) contemplando os trilhos até Rondonópolis e incluindo a FICO, uma invenção então recente, com imediata inclusão no PNV. Mas para a surpresa de todos, bomba, bomba, o trecho até Cuiabá foi excluído. Foi a segunda punhalada.

     E logo veio a terceira, quando a ALL devolveu à União a concessão que herdou da Ferronorte nos trechos pós Rondonópolis, um dos quais passava por Cuiabá, milhares de quilômetros de concessão em uma das regiões de maior produção de alimentos no mundo. Uma devolução no mínimo estranha para uma grande empresa internacional do ramo ferroviário na época. A seguir, em 2012 surgem as primeiras notícias sobre a Ferrogrão em um dos trechos devolvidos pela ALL, ligando o porto de Miritituba (PA) a Sinop. A Ferrogrão logo despertou o Sudeste ante a possibilidade de seus portos perderem grande parte do escoamento da produção do Médio-Norte mato-grossense. 

     Em resposta, é inaugurado em Rondonópolis o maior terminal de cargas da América-Latina, já com foco em levar seus trilhos o mais próximo possível do centro de produção ao norte. Lucas do Rio Verde seria a primeira meta tendo como principal obstáculo uma previsível reação da sociedade civil cuiabana. Para contemporizar lançam um ramal de Rondonópolis a Cuiabá criando uma bifurcação fácil de fazer uma e não fazer a outra. Como garantia aos cuiabanos, o projeto veio com a promessa do ramal para Cuiabá ser o primeiro a ser inaugurado (em 2025, Campo Verde em 2026). Acalmados os cuiabanos, questões pendentes contam com apoio de Cuiabá, como a própria lei estadual das ferrovias.    

     No último dia 7 de novembro a obra foi iniciada, porém no trecho Rondonópolis – Lucas do Rio Verde. O cronograma inicial será mantido? O ramal para Cuiabá e toda a Baixada Cuiabana ainda será o primeiro? Até acredito no interesse da Rumo chegar a Cuiabá com a Brado, por sua carga “conteinerizável”. Mas gato escaldado... Cuiabá já estaria sendo preterida de novo? Mesmo com suas 20 milhões de ton/ano de carga de retorno (2018), energia abundante, economia de aglomeração e a maior concentração de mão de obra no estado, condições básicas para a verticalização em escala da produção de Mato Grosso em seu próprio território? Outra punhalada?