"FIRMITAS, UTILITAS et VENUSTAS" (Tríade Vitruviana)



segunda-feira, 22 de junho de 2020

OS RATOS DE OSWALDO CRUZ

                                                                                      Revista História Ciências Saúde Manguinhos

José Antonio Lemos dos Santos
     Conta a história que no começo do século passado o Rio de Janeiro era assolado pela peste bubônica transmitida pela pulga dos ratos, e o grande sanitarista Oswaldo Cruz, ainda jovem, mas já responsável pela Saúde Pública na então capital federal, adotou como uma de suas principais medidas a compra dos animais mortos, pagando ao cidadão um preço razoável por unidade. Sem dúvida, em tese uma ótima estratégia com perspectivas de excelentes resultados. Só que o jovem doutor não contava com a criatividade nacional. Logo descobriu que a medida havia desencadeado uma “cadeia produtiva” que ia de produtores de ratos, a importadores, passando por toda uma gama de intermediários.
     Aparecerem aqueles que compravam os bichinhos do povo e os revendiam ao governo, levando um lucrozinho na transação. Inclusive é contada a história de um destes “empresários” que ficou conhecido apenas pelo nome de “Amaral” que criou uma verdadeira rede de compra de ratos pela cidade, ficou milionário e acabou preso. Pode até ter tido a boa intenção de facilitar a implantação da ideia do governo criando uma “economia em escala”, já que a cidade já era grande e parte da população poderia ter dificuldades para acessar os pontos de compra do governo. Virou figura popular, personagem de charges e música de carnaval. Não sei que fim levou, nem se entrou para a política depois de solto. Houve também casos daqueles que importavam ratos de outros municípios, bem como os que montaram verdadeiros criatórios de ratos pela cidade. Assim, uma boa ideia acabou sendo distorcida. Se bem aplicada poderia ter reduzido o período em que a epidemia prevaleceu na cidade e o número de mortes resultante.
     Episódio semelhante teria acontecido na Índia, durante o período do domínio britânico. Não sei se foi antes ou depois do caso de Oswaldo Cruz. O problema lá foi com uma proliferação de serpentes que se espalharam pelas cidades colocando em risco a população, tantos os nativos quanto os britânicos. É claro que o governante teve que tomar providências e a principal delas foi a compra das cobras com o governo pagando um preço atraente por exemplar entregue pela população. Adivinha o que aconteceu? Exatamente o que aconteceu no Rio. Só que ao ser suspensa a política pelo governo, a população abriu os criatórios e as cobras se espalharam em quantidades superiores às de antes. A criatividade então não seria privilégio brasileiro.
     O mundo luta hoje contra a pandemia da Covid-19. No Brasil, qualquer que fosse o governo federal, a medida preventiva primordial seria a declaração de Estado de Emergência em Saúde Pública, preparando as estruturas governamentais para os procedimentos rápidos necessários ao tratamento da grave ameaça que se avizinhava. A necessidade de repatriação urgente de brasileiros moradores da cidade de Wuhan, na China, epicentro mundial da contaminação, talvez tenha apressado a emissão da tal declaração de Emergência que veio pelo Decreto do dia 4 de fevereiro, antes da comprovação de qualquer caso em território brasileiro. Parecia que tudo estava bem encaminhado.
     Contudo entre as medidas agilizadoras do Estado de Emergência estava a contratação emergencial sem licitação, ou seja, a liberação para aquisição de bens e serviços sem licitação. Traduzindo: bilhões em hospitais de campanhas para construir; respiradores e testes para comprar. Depois o governo decidiu remunerar em dobro os leitos em UTI’s destinados ao Covid-19 em relação aos ocupados por outras enfermidades. Daí, tal como no caso dos ratos de Oswaldo Cruz ou dos indianos, a praga virou oportunidade aos “amarais” de hoje. E a Covid-19 matadora cruel passou de foco a pretexto, enquanto o povo morre.

Ouça a marchinha da época do site da FioCruz:
https://www.bio.fiocruz.br/images/marchinha-ratos-ratos-ratos.mp3

segunda-feira, 15 de junho de 2020

CONTANDO VIDAS

                                           Uma nova alvorada                               (Foto: Felício)
José Antonio Lemos dos Santos
     A tragédia continua e a dor ainda é muita, em especial por estas bandas de cá, Mato Grosso, com a população apreensiva com o súbito aumento no número de infectados e de óbitos chegados numa onda retardada da pandemia que avança pelo coração do Brasil. Em um primeiro momento dava a impressão de que a praga por aqui pudesse ser menos cruel. Qual o que, os números avançam e os cuidados pessoais e sociais precisam atenção especial. Entretanto, aqui quero tratar de esperança, só de esperança, mesmo que ainda como uma tênue luz a brotar no horizonte dos números gerais nacionais da pandemia, como um possível bálsamo em meio a tanta dor.
     Ninguém morre na véspera diz o velho ditado. E nem no dia seguinte, talvez fosse um complemento válido. Porém, contrariando a sabedoria popular, a burocracia do Ministério da Saúde desde o início da pandemia vinha utilizando uma forma de contabilização dos óbitos no mínimo estranha, sem dúvida equivocada e, pior, aterrorizante. Recorro ao meu artigo de fins de abril passado UM IDIOTA NA PANDEMIA, quando reclamei do assunto. Ora, sob alegação de dificuldades na análise técnica dos óbitos, muitos destes ficavam para trás e divulgados posteriormente, com atrasos constatados em mais de 50 dias.
     Só que, absurdo, vinham sendo lançados no último dia da contagem, sob o título de “óbitos registrados nas últimas 24 horas”, o que dava a entender ao cidadão, que aquele era o número de mortes ocorrido de fato naquele dia, quando na verdade, a grande maioria destas ocorreram em dias anteriores não especificados. Além de gerar um clima de pânico na população, falseava as estatísticas, a ponto de se poder prever que passada a última morte real causada pela covid-19 no Brasil, ainda sobrariam óbitos a serem lançados nas estatísticas brasileiras. Ou seja, a pandemia oficial brasileira só terminaria após seu fim real.   Evidente que cada morte tem seu dia, e deve ser respeitado como um direito natural do homem, como sua data de nascimento. Sendo mesmo inevitáveis esses diagnósticos atrasados, pois então que fossem lançados na data de cada óbito, numa distribuição menos concentrada e distorcida, além de mais fidedigna à realidade e menos apavorante.
     No dia 29 de maio assisti a uma exposição do Ministério da Saúde em que se tratava do assunto mostrando inclusive uma nova forma de apresentação na qual em um gráfico simples de se entender eram mostrados de forma distinta os óbitos ocorridos de fato em suas datas de lançamento e os lançados posteriormente, mas cada um em sua respectiva data de ocorrência. Perfeito. Aguardo a mudança. De fato, algum tempo depois, ainda que no jeito atabalhoado deste governo se comunicar, quase sempre gerando polêmicas evitáveis, foi anunciada a mudança na forma de apresentação dos dados da pandemia. Aleluia! A meu ver ficou muito mais completo e compreensível.
     Quanto ao gráfico com os óbitos em seus respectivos dias, ainda não foi disponibilizado até está segunda-feira quando escrevo o artigo, mas vi em entrevista o ministro falar bem sobre ele, justificando o atraso por estar em fase final de ajustes.
     De qualquer forma, ficou tão melhor a apresentação que seu gráfico “Número de óbitos por semana endêmica”, mostrou com clareza que a semana passada foi a primeira a registrar um número de óbitos inferior à anterior, ou melhor, menor que as duas semanas anteriores, poupadas 306 vidas preciosas. Uma grande notícia não noticiada. Será apenas um momento de alívio nesta desgraceira toda? ou uma expectativa que já pode ser pensada como tendência? ou a esperança de que em breve passaremos a contar vidas, vidas poupadas, ao invés de mortes?

segunda-feira, 8 de junho de 2020

MEIO AMBIENTE, O RETORNO DA PARTÍCULA

Lixo espacial - Nossa Ciência
                                         Lixo Espacial  (imagem: nossaciencia.com.br)
José Antonio Lemos dos Santos
     Segundo Erich Fromm, um dos fundadores da psicanálise moderna, o surgimento do homem se dá no momento em que ele perde seu equilíbrio com a Natureza, simbolizado pelo autor na imagem da expulsão do Jardim do Éden com dois anjos com espadas de fogo impedindo-lhe a retorno. A partir daí vive em constante busca por esse equilíbrio perdido. Em Gordon Childe esse momento poderia ser identificado na crise de aquecimento vivido pelo planeta do plistoceno para o holoceno, na passagem da Selvageria para a Barbárie, quando, segundo ele, o homem deixa de ser “parasita” da Natureza para ser seu “sócio”.
     Sendo ao nascer, ainda segundo Fromm, carente de adaptação instintiva à Natureza, o homem é o que precisa de muito mais tempo de proteção dentre os animais. Tinha tudo para dar errado, porém, se espalhou por toda a superfície da Terra e ainda avança buscando expandir-se fora dela. Sua evolução se baseia no fato de haver deixado sua origem, a Natureza, e jamais poder voltar a ela, restando-lhe um só caminho: “encontrar uma nova pátria — criada por ele ao tornar o mundo humano e ao tornar-se humano também”, conforme o autor. Tem que transformar o mundo para sobreviver, e nisso, também é transformado.
     O grande problema humano e ao mesmo tempo o grande propulsor da humanidade está na necessidade de encontrar soluções para seus gargalos de subsistência não mais solucionáveis naturalmente, desafios estes sempre renovados pois cada solução encontrada gera um novo problema de ordem superior. Resolve a demanda da fome e aumenta a população que por sua vez exigirá a produção de mais alimentos. Sem a casinha nas costas, resolve o problema do abrigo, aumentando as condições de sobrevivência, reduzindo óbitos e gerando a necessidade de mais moradias, mais cidades para mais gente.  Sem asas, resolve o problema das distâncias com o avião e o automóvel criando o engarrafamento e a poluição. A cada superação mais avança sobre a natureza e mais transforma seu ambiente natural. A cada sucesso o homem atinge um nível superior de problema e de evolução tecnológica, tecnologia condutora e conduzida, sua filha prendada e madrasta nesse processo. Ou como na velha charge do burro puxado pela cenourinha que lhe vai à frente, presa a uma vara em seu próprio dorso.
     De parasita a sócio, em 10 mil anos de transformações o homem chegou a se arvorar a dono absoluto da Natureza na tentativa de fazê-la escrava, senhor de poder irrestrito ilusório para transformar o próprio ambiente a seu bel prazer.  E começou a receber de volta duras lições das quais começa a aprender que se por um lado em sua origem ele deixou a Natureza enquanto animal, por outro lado ele ainda está nela como sua grande mãe, a Mãe-Terra, Gaia, já identificada pela mitologia grega a mais de três mil anos, ou a “óikos” da Ecologia moderna. Não pode maltratá-la sem maltratar-se também.
      A evolução humana, porém, ampliou em muito a presença transformadora do homem por sobre todo o planeta e já arranha as bordas do espaço sideral, com estação espacial, satélites, e outros objetos e seu consequente lixo espacial, instigando estas reflexões em mais um Dia do Meio Ambiente. A situação atual conduz a percepções mais amplas que a do simples âmbito local, urbano, regional, de biomas ou bacias, ou planetário e exige uma reconsideração da Natureza em sua abrangência universal, ou seja o homem inserido racionalmente no dinamismo cósmico como uma de suas partículas mínimas, entretanto protagonista da grande transformação permanente, sem esquecer a eterna busca do reequilíbrio perdido. Apesar das espadas de fogo.
NOTA: Este artigo foi publicado em alguns sites como o título MEIO AMBIENTE E A REINSERÇÃO DA PARTÍCULA.