Brasília e as perspectivas monumentais (Imagem: agenciabrasil.ebc.com.br)
José Antonio Lemos dos Santos
Em 1420, seiscentos anos atrás, foi iniciada a construção da cúpula da igreja Santa Maria del Fiore, em Florença, um desafio que o engenho humano não tinha conseguido resolver até aquele momento. E esta evolução técnica se deu graças a Filippo Brunelleschi, originalmente um joalheiro que precisou de muito esforço para mostrar ser capaz de construir a grandiosa cúpula e ser comissionado para construí-la. Ao final não só construiu a cúpula, mas com ela marcou o início do Renascimento na Arquitetura e fixou as bases do que é hoje o projeto arquitetônico. A sua nova maneira de projetar estabeleceu que qualquer obra deve ser definida em todos os seus detalhes antes de construída, algo tão óbvio hoje que parece ter sido sempre assim.
Em seguida vem Alberti, um quase contemporâneo que levou o mesmo raciocínio para a cidade, considerando-a uma “grande casa”, portanto um edifício também sujeito à maneira de projetar de Brunelleschi, ou seja, a cidade também deveria ser concebida totalmente antes de ser construída. Surge então o urbanismo clássico com suas formas geométricas engenhosas, as cidades-estrêla, as perspectivas monumentais, o monumento alvo, etc. Brasília é assim, séculos depois, genialmente concebida “in totum”, tal como na fórmula inicial renascentista, um objeto pré-definido em todos os seus detalhes.
Aconteceu que os próprios renascentistas não tiveram chances de aplicar a pleno suas teorias urbanísticas. A Europa vinha de um período de longas guerras e epidemias, sem demanda para novas cidades. Quando havia, resumia-se a pequenos arranjos em função das guerras religiosas, defesas militares e portos comerciais. Fora isso, só intervenções em cidades já existentes, reformas ou ampliações, não chegando a ver suas ideias aplicadas em uma nova cidade de porte significativo. Teriam que esperar Brasília, a coragem política de JK, a genialidade de Lúcio Costa e a força do trabalho do povo brasileiro. Porém, do século XV até a construção de Brasília muita coisa aconteceu na história do mundo e no desenvolvimento do urbanismo.
Arriscando um resumo, nesse ínterim a grande inflexão histórica foi a Revolução Industrial com transformações sociais e descobertas científicas. A urbanização é acelerada e os problemas da recém nascida cidade industrial forçam, no meio do século XIX, o surgimento de novas propostas no urbanismo, como as dos socialistas científicos e utópicos, e as leis sanitárias de Londres e Paris. Logo surgem a Cidade Industrial de Garnier, a Cidade Linear de Soria, a Cidade Jardim de Howard, a “unidade de edificação” de Berlage e a “unité d´habitation” de Le Corbusier, como um cadinho efervescente preparando uma solução contemporânea para a nova cidade que surgia. Enfim, abraçando todo esse substrato de proposições históricas, é elaborada em 1933 a Carta de Atenas, documento mestre do Urbanismo Modernista.
Brasília é a materialização da Carta de Atenas e a realização maior dos fundamentos do urbanismo renascentista, indispensável à sua crítica essencial como em sua natural superação pela própria dinâmica da História e da prática do urbanismo posterior. Brasília é resultado do pensamento urbanístico acumulado, em especial do Renascimento até sua concepção e constitui com muita justiça um dos mais autênticos e expressivos patrimônios da humanidade. Tivesse sido europeia, seria melhor considerada pela cultura oficial brasileira. Brunelleschi e Lúcio Costa formam o alfa e o ômega desse processo que completa 600 anos e precisam ter seus nomes devidamente reavaliados nos momentos históricos que ajudaram a construir e nos quais foram os principais protagonistas, contudo marginalizados, senão esquecidos.
Quero parabeniza-lo por mais um belo artigo, este em particular você faz uma leitura de Brasília observando a ousadia do brasileiro ao implantar no coração central do Brasil uma nova cidade. Ação de um planejamento territorial que tinha com a intenção iniciar um processo de urbanização no interior do Brasil. Seu foco não é a cidade propriamente dita, mas o seu processo de criação, a possibilidade de planejar e idealizar algo que existirá apenas no futuro, tendo a técnica de Brunelleschi como o grande instrumento que permite representar e ver objetos antes de sua construção.
ResponderExcluirA magia de imaginarmos objetos, edificações e cidades antes que existam, por vezes, faz com que nós Arquitetos e Urbanistas nos sintamos um pouco deuses, com o poder de concretizarmos ideias e ideais, quais sejam de caráter realista ou utópico.
Brasília representa a concretização de um ideal de cidade que refletia os anseios de uma nova civilização que antes encontrava-se apenas nos livros de teoria.
Enquanto referência de concepção urbana, hoje, no meu entender, Brasília não se enquadraria aos paradigmas e necessidades da sociedade e da cidade contemporânea. Ao longo de sua existência recebeu críticas, foi e ainda é ao mesmo tempo amada e odiada, no entanto, não tira dela o caráter inovador, revolucionário e ousado que tiveram seus idealizadores. Uma utopia que se tornou realidade.